Cancro? Numa criança? Ou mesmo num bebé? Num jovem que ainda ontem jogava futebol, dava o seu primeiro beijo apaixonado no escurinho do cinema, como se cantava numa dada altura? A interrogação angustiada deriva desta ideia, construída durante gerações, que havia doenças de velhos – ou, na pior das hipóteses, de adultos.

Foi para este conjunto de pessoas angustiadas, esperançadas, surpresas, que nasceu a Acreditar – Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro. Somos, ou pelo menos querermos ser, a invisibilidade presente, a existência discreta, mas eficaz, para estes Pais (e “Pais” será sempre, neste artigo, o conjunto do pai e da mãe) e crianças ou jovens. Para nós o desafio é, muitas vezes, o da adivinhação: como reagiu aquele pai? Que palavras quer ouvir a mãe que chora, o que fará a criança com um brinquedo oferecido por quem lhe é estranho? Como interpretamos, nós, pessoas da Acreditar, os olhares, as mãos nervosas, um corpo rígido, um sorriso que não é um sorriso, um silêncio que pode ser tudo?

Sou, por vontade de algumas pessoas, o presidente da Acreditar. Mas antes de ter este cargo, que me honra e para o qual sou incompleto, já era pai, e é nesse sentido que os dois primeiros parágrafos poderiam ter sido escritos na primeira pessoa do singular. Sei o sufoco, a angústia, a esperança, a confiança e o optimismo, que são palavras diferentes, mas que caminham juntas. Sei o espanto agressivo da palavra cancro num filho, sei a fé que nos move, a total e absoluta dedicação (ainda que humanamente imperfeita) que nos faz dar importância ao que é importante, a força que sempre vamos buscar em nome da fragilidade de um ser indefeso, mesmo que achemos que não a temos. Sei também do avanço da técnica, da vantagem de se ser europeu ou de viver nesta civilização dos cuidados avançados, da evolução científica, dos diagnósticos precoces, dos medicamentos. Sei tudo isto porque sou um pai que tem a Acreditar no coração e na agenda.

Lidar-se com um Pai nestas condições é lidar-se com o desconhecido. A permanência continuada, ou mesmo intermitente, num hospital, cria nos Pais características próprias que não vêm num manual de instruções, numa bula, num cartão de visita que se estende previamente. Ouvir os Pais que têm um filho internado é sermos confrontados com uma realidade que, se a vida tiver sido fagueira, nos é estranha. E por isso a abordagem a estes Pais tem de se adequar à estranheza, ao desconhecido, ao imprevisível – ou mesmo àquilo que intuímos: para uns Pais nestas condições, conversar sobre a doença do filho é uma catarse. Falar dos medicamentos, dos efeitos secundários, dos outros casos, das noites mal dormidas, dos sucessos, dos desalentos, não é puxar a tristeza, persistir no desespero. Pelo contrário, o que os Pais querem, muito simplesmente, é iluminar um buraco negro que têm dentro de si, desfazer uma treva interior, chorar e lavar a alma, seguir em frente com ânimo.

Nenhum Pai sai igual de um processo destes, pois todas as encruzilhadas do caminho nos marcam. Podemos, nós, Pais, lamentar o sucedido, odiar a vida e o próximo, derramar um rol de queixas sobre as injustiças do mundo, martirizar-nos. Mas podemos, nós, Pais, encontrar um sentido para as coisas, redefinir o olhar sobre o nosso próximo, sobre este mistério de existir, como cantava o fado, sobre o que fazemos com aquilo que nos acontece. Por vezes o desafio é esse mesmo.

Sobre a Acreditar:

A Acreditar, Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro existe desde 1994. Presente em quatro núcleos regionais: Lisboa, Coimbra, Porto e Funchal, dá apoio a todos os ciclos da doença e desdobra-se nos planos emocional e social. Com a experiência de quem passou pelo mesmo, enfrenta com profissionalismo os desafios que o cancro infantil impõe a toda a família. Momentos difíceis tornam-se possíveis de viver quando nos unimos.