Uma das conquistas dos últimos 20 anos no Afeganistão foi a libertação das mulheres, ainda que quase apenas nas principais cidades. Muitas puderam divorciar-se. O que as espera agora?

Colocadas à distância, estas perguntas estão carregadas de angústia, que se mistura com a desonra da traição à promessa declarada há 20 anos pelos Estados Unidos da América, à cabeça dos aliados NATO, para justificar a invasão do Afeganistão: a promessa de que a invasão não visava apenas a caça aos terroristas do infame 11/9, mas também a de construção de um Estado laico e forte, respeitador do valor dos direitos civis, com tolerância e liberdade para todos — a liberdade das mulheres impunha-se como conquista essencial.

Passaram 20 anos, e não só a promessa ficou por cumprir como o país volta para as mãos daquela gente que tem no histórico a ambição de devorar a civilização humanista.

As dúvidas sobre o futuro próximo — que, para quem está fora, geram angústia — são terror para quem está lá dentro do Afeganistão a viver esta recaída do país no poder dos taliban — expressão que na língua pashtun significa "estudantes".

Estes "estudantes" do arcaico fundamentalismo religioso têm sido hábeis a explorar a total falta de princípios e de estratégia por parte de quem ao longo destes 20 anos foi posto a governar o Afeganistão.

Os "estudantes" (taliban) continuam a mostrar-se argutos. Sabem que têm pela frente um choque cultural: o povo afegão, sobretudo o das cidades, tomou contacto nestes 20 anos com hábitos ocidentalizados. Os afegãos passaram a estar ligados pela internet e generalizou-se a possibilidade de acesso ao que corre pelo mundo.

Estes taliban, que em 2001 tinham percebido a necessidade de recuo estratégico para as montanhas das regiões pashtun, onde continuaram a financiar-se com o narcotráfico, reorganizaram-se, souberam planear minuciosamente o ressurgimento e a reconquista do poder.

O fracasso do plano norte-americano e de alguns dos aliados NATO de estabilização e democratização do Afeganistão começou por ser político: nunca foi conseguido o consenso político em Cabul para que fosse levantada uma muralha para conter os taliban. O governo afegão foi sempre uma história de recorrente intriga e decomposição. A incapacidade política repercutiu-se na indisciplina militar.

É assim que a resistência das forças militares do governo afegão à escalada dos taliban colapsou em alta velocidade, com as tropas ocidentais reduzidas ao papel de observadoras do desastre. Com os taliban a tomarem o controlo do sofisticado equipamento militar que os EUA tinham entregado às tropas governamentais, mas que estas abandonaram na deserção geral destes últimos dias.

Estes "estudantes" têm a lição bem estudada. Mostram estratégia. Estão agora a aparecer com discurso moderado, muito diferente do da geração do líder que conduziu a tomada do poder obscurantista no Afeganistão entre 1996 e 2001, a geração daquele Mulá Omar que há 20 anos ofereceu a Bin Laden um santuário para base do terror da al-Qaeda. Muitos taliban desse tempo já nem estão vivos. Os taliban de agora já não são os combatentes que nos anos 80 fizeram cair o regime pró-soviético e obrigaram à retirada das tropas soviéticas.

No final do século XX, o que a liderança carismática do Mulá Omar pretendia era a irrigação de toda a população com a ideologia de matriz islâmica fundamentalista.

Depois da ocupação norte-americana do Afeganistão, em 2001, o movimento taliban foi muito fustigado pelos bombardeamentos que causaram a morte de mais de 100 mil dos seguidores e combatentes, e fragmentou-se.

Antonio Giustozzi, investigador sénior no King's College, autor de livros como The Taliban at war (2019) e Decoding the new Taliban (2009), explica que as novas gerações taliban estão referenciadas como muito menos ideológicas e fundamentalistas, e muito dadas à partilha de interesses com redes criminosas e grupos subterrâneos que se dedicam a todo o tipo de tráficos, sobretudo os de drogas.

Com o desaparecimento de Mulá Omar, a liderança dos taliban tornou-se colegial, com representação das diversas fações, umas com o radicalismo clerical de antes, outras mais pragmáticas.

É também Giustozzi quem explica que a nova liderança taliban começou por privilegiar o relacionamento com o Irão, mais do que com o Paquistão. O modelo de Estado iraniano aparece como o que os taliban de agora desejam instalar em Cabul, em provável aliança com a Irmandade Muçulmana. A ligação ao Irão xiita é suscetível de gerar tensões com as fações sunitas que ainda cultivam a ideologia da al-Qaeda e ainda com muitos seguidores no movimento taliban.

Além da nova opção taliban pelo regime iraniano, também há que contar com a China. Há menos de um mês, uma delegação da liderança taliban foi recebida com todas as honras em Pequim. Ficou evidente que a liderança chinesa deu a bênção à tomada do poder no Afeganistão pelos taliban. Tem motivos geopolíticos para o fazer: amplia a influência sobre a região euroasiática, com a China a encabeçar um triângulo que também tem vértices no Paquistão e no Afeganistão. Uma convergência que Pequim poderá usar para reforçar o isolamento da minoria muçulmana uigur de Xinjiang.

Perante tudo isto, com a realidade da tomada do poder em Cabul pelos taliban, surge a questão à derrotada diplomacia norte-americana e europeia: há que isolar aquele regime ou tratar de negociar com aquela gente?

A opção tem de ser a que melhor possa servir o essencial: o respeito pelos valores fundamentais da democracia, a liberdade e os direitos humanos e civis.

Um conhecedor como Giustozzi acredita que estes taliban de agora não serão os torcionários da geração cortada pela invasão norte-americana em resposta ao 11 de setembro de 2001. 

Talvez o desastre maior possa ser contido. Mas há um outro, revoltante, que é irreparável, o da honra perdida pelos EUA e aliados ocidentais com a traição aos afegãos que encheram de promessas que ficaram por cumprir e que deixaram entregues ao destino incerto. Resta a obrigação de acolher todos os que quiserem deixar o Afeganistão.

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