1. Como incontáveis milhões de pessoas, cresci com Woody Allen. Não há nenhum cineasta, vivo ou morto, de quem tenha visto tantos filmes. E ouvi bandas sonoras, li peças, contos. Woody Allen é, em si, um cinema, uma cidade, uma escrita, um humor. Não sei se existe mais algum judeu nova-iorquino como ele, aliás, de certeza que não, mas todos os judeus nova-iorquinos receberam esse presente genial de passarem a ser ele, tal como o mundo tem muito mais graça por causa dele.
Isto dito, não é por isto que acredito em Woody Allen. É porque os factos que conheço, as investigações e peripécias desta tragédia greco-americana que é a acusação de abuso sexual contra ele, tudo isso ponderado me faz acreditar em Woody Allen, e não acreditar em Mia Farrow.
Acreditar/não acreditar são convicções, falo por mim, por isso o título está na primeira pessoa, e não é “Woody Allen está inocente”. Não posso afirmar que Woody Allen esteja inocente, claro, é possível que não. Mas a minha convicção é a oposta. Não apesar dos factos, como a convicção de outras figuras deste caso. Mas, repito, por causa dos factos.
Quando comecei a ler os relatos do caso para esta crónica não sabia onde iria dar. Não decidi escrevê-la para defender Woody Allen, mas para perceber o que se pudesse perceber com algum tempo de pesquisa online. Não tinha ideia do que concluiria, muito menos de qual seria o título. O que sabia à partida era o que ao longo dos anos fui retendo, sempre que o alegado abuso voltava às notícias, e do que fui retendo havia algo destrambelhado em Mia Farrow. Talvez a diferença entre um neurótico inofensivo (Allen) e alguém eventualmente perigoso (Farrow). Mas eu estava longe de ter a dimensão épica, grega da coisa. E agora, aqui chegada, qualquer outro título seria um rodeio.
2. Acreditar em Woody Allen quer dizer também isto: não o confundir com Bill Cosby ou Harvey Weinstein, acusados por dezenas de mulheres, violadores em série. Ou com Roman Polanski, que admitiu ter violado uma menina de 13 anos. Com qualquer comprovado abusador. O facto de Hollywood ter feito uma moda do #metoo/#timesup pode dar um novo alento à campanha de 25 anos de Mia Farrow. Mas Woody Allen não é mais criminoso porque Cosby, Weinstein ou Polanski são criminosos. Nem eles são menos criminosos por Woody Allen não ser criminoso. Nem uma feminista é menos feminista por acreditar em Woody Allen. Ao contrário, a luta contra o abuso não pode perder-se no alvo errado.
Na semana passada escrevi aqui sobre os meus nãos ao manifesto de que Catherine Deneuve se tornou cabeça de cartaz (entretanto ela fez questão de se distanciar dos conservadores a quem esse manifesto serve, e pediu desculpa às mulheres abusadas, não tira que a assinatura continue lá, mas já é alguma coisa). Um dos vários problemas desse manifesto é ele confundir a vaga puritanista com a luta contra o abuso. Como se quem luta contra o abuso subscrevesse automaticamente tontices puritanas de Hollywood e outros.
A vaga puritana hoje em curso, muito além de Hollywood, não é feminista; haver nela mulheres que se consideram feministas não torna o feminismo puritano. Um feminismo puritano não só não me interessa como me parece uma anulação dos termos. Tal como o entendo, o feminismo será certamente não-puritano, ou não será. Pelo menos não será o meu. Mas essa vaga fica para outra crónica, voltemos a Woody Allen.
3. O alegado abuso remonta a 1992. Allen e Mia já estavam separados, na sequência da relação que ele iniciara com Soon-Yi, filha adoptiva de Mia e do seu anterior marido, André Previn. Mia ficara furiosa ao saber do romance, terminara imediatamente com Allen, muita gente pelo mundo ficou chocada. Mas a relação entre Allen e Soon-Yi revelou-se tão sólida que estão juntos até hoje, há mais de 25 anos, com duas filhas adoptivas quase adultas.
Então, em 1992 ele estava com Soon-Yi em Nova Iorque, e Mia com os muitos filhos de várias relações, biológicos e adoptados, em Connecticut. O contacto com Allen era hostil, negociações difíceis para visitas, etc. As crianças que diziam respeito a Allen eram: Ronan, 4 anos, supostamente filho biológico de ambos; Dylan, 7 anos, e Moses, 13 anos, que Mia adoptara em bebés e de quem Allen se tornara pai adoptivo oficial.
Allen conseguiu marcar uma visita no começo de Agosto. Mia ausentou-se, mas a casa estava cheia de crianças, amas, empregados. Segundo Mia, depois desta visita Dylan disse-lhe que Allen abusara dela. Mia gravou vídeos de Dylan supostamente a incriminar o pai adoptivo, denunciou Allen, ele foi notificado. Seguiu-se uma investigação de seis meses de uma unidade especial de abuso de crianças de Connecticut. Allen passou por todo o tipo de interrogatórios, incluindo detector de mentiras. Essa investigação concluiu que “Dylan não foi abusada sexualmente por Allen”. E os investigadores apontaram duas hipóteses para explicar as declarações de Dylan, quer as gravadas por Mia quer as que fez à polícia, com inconsistências várias. Primeira hipótese: “As declarações não eram verdadeiras mas foram inventadas por uma criança emocionalmente vulnerável, apanhada numa família com perturbações, a responder a esse stress”. Segunda hipótese: “Dylan foi treinada ou influenciada pela mãe”. Remate: “Se podemos concluir que Dylan não foi abusada sexualmente, não podemos ser definitivos quanto a qual das hipótese é verdadeira. Acreditamos que o mais provável é uma combinação das duas.”
A esta investigação, seguiu-se outra, dos Serviços Sociais do Estado de Nova Iorque, durante 14 meses. Mais exames, interrogatóricos, cruzamento de dados. Conclusão: “Não foi encontrada nenhuma prova credível de que a criança nomeada neste relatório tenha sido abusada ou maltratada.”
Ou seja, Allen nunca chegou a ser acusado de abuso sexual, muito menos julgado, porque duas longas investigações, em diferentes estados, com diferentes peritos, concluíram não haver fundamento para um processo.
Haverá sempre quem tente atribuir isto ao estatuto, ou ao suborno, de Allen. Mas alguém acreditará de facto que o estatuto de Allen cegaria dezenas de peritos durante meses, ou que ele andasse a comprar esta gente toda? E o estatuto de Mia, também ela uma estrela, depois embaixadora da UNICEF, activista das crianças do Darfur e etc, para além da sua imagem de multi-mãe, adoptando este mundo e o outro?
O facto é que, depois de as investigações sobre abuso serem encerradas, Allen fez um pedido de custódia de Dylan e Moses, e Mia ganhou a batalha. Ou seja, o estatuto de Allen contou zero, como não deve contar, para essa batalha legal. A multi-mãe Mia ficou com os filhos, que cresceram quase sem contacto com Allen.
4. Depois das inconsistências iniciais, a acusação de abuso fixou-se na seguinte versão: nesse dia de Agosto em que visitou as crianças, Allen teria levado Dylan para o sotão da casa, teria pedido para ela se deitar de barriga para baixo a brincar com um comboio eléctrico que lá estava montado, e então teria abusado dela. Dylan detalhou exactamente o abuso, numa emotiva entrevista à televisão, agora: “Tocou os meus lábios vaginais e a minha vulva com o dedo.”
No texto que Allen escreveu sobre o assunto para o “New York Times” em 2014 — respondendo ao que Dylan escrevera, pouco antes —, ele diz que inicialmente a acusação lhe pareceu tão estapafúrdia que achou que ninguém a ia levar a sério. Ele, em guerra com Mia Farrow, apaixonado por Soon-Yi, por quem enfrentara uma tempestade de críticas moralistas, ia ao Connecticut, com a casa cheia de gente, e levava uma criança para um sotão cheio de tralha, onde nunca conseguira sequer estar, por ser um claustrofóbico nato, assim iniciando, e terminando, a sua carreira de abusador de crianças. Lógico, não? Ou seja, de todos os momentos em que se podia ter revelado como abusador escolheria logo um em que tantos naquela casa lhe eram hostis, e estariam vigilantes, e ele teria todo o interesse em não dar motivos à sua ex, não teria nem margem para se escapar para um sotão, ainda que pusesse essa hipótese. Sendo que nunca antes, nem nunca depois, em 82 anos de vida, alguém o acusara de algo semelhante. Semelhante ou não semelhante. Quantos filmes fez Allen? Com quantas centenas de actores trabalhou? Quantos relatos ouvimos sobre comportamentos abusivos?
Podemos colocar todas estas questões. A elas veio somar-se há pouco tempo o testemunho de Moses, o filho que então tinha 13 anos. E o testemunho de Moses coloca Mia como abusadora. Hoje terapeuta familiar, ele tem uma vida autónoma. Mas durante anos, conta, tinha terror das reacções da mãe. Uma mãe que o espancava subitamente, em ataques de cólera, por motivos como supeitar que ele correra as cortinas de um quarto. Mia, na versão de Moses, é uma mulher tão calculista quanto explosiva, violenta e sistematicamente manipuladora, obrigando os filhos a dizerem coisas que nunca aconteceram.
Quanto ao sotão, diz ele, era um lugar cheio de tralha, com armadilhas para ratos, onde ninguém passava tempo, muito menos havia comboios montados para brincar. “Claro que Woody não molestou a minha irmã. Ela adorava-o e estava sempre à espera que ele nos fosse visitar. Nunca se escondeu dele até a minha mãe conseguir criar uma atmosfera de medo e ódio em relação a ele. No dia em questão, seis ou sete de nós estavam em casa. Estávamos todos em salas comuns, Woody e Dylan não estavam num lugar à parte. Não sei se a minha irmã realmente acredita que foi molestada ou está a tentar agradar à minha mãe. Agradar à minha mãe era uma motivação muito poderosa, porque estar do lado errado em relação a ela era horrível.”
Dylan considerou as memórias do irmão “irrelevantes”. Ela que fez, refez, e agora fez de novo, um apelo lancinante ao mundo para ver Allen como abusador, para enfim escutar as memórias dela.
É possível acreditar em Woody Allen e acreditar que Dylan acredita no que diz. Aos 32 anos, desde os 7 que vive assim. A sua vida construiu-se em torno desta tragédia. Como quebrar com isto sem se quebrar, sem negar toda a sua vida? Acredito que ela acredite no que diz, que tenha incorporado isso. Que, de certa forma, se tornou prisioneira disto. Ou, antes, foi tornada por Mia Farrow.
5. Se Mia inventou o enredo, porquê escolher o sotão? Segundo Woody Allen por causa de uma canção chamada “With my daddy in the attic”. Quem escreveu essa canção? Dory Previn. Quem era Dory Previn? A mulher com quem André Previn era casado quando chegou Mia, e engravidou dele, e depois casou com ele. Dory fez esse álbum a seguir, e tem lá outra canção chamada “Beware of young girls”. Mia conhecia-a de certeza. E, segundo Allen, foi buscar o sotão a esse álbum para o punir. Isto depois de lhe dizer: “Tiraste-me a minha filha, agora vou tirar-te a tua.”
6. Qualquer trágico grego teria muito com que se entreter aqui. No caso de Mia Farrow, aliás, a tragédia vem da família, já. Filha de Maureen O’Sullivan (a Jane de “Tarzan”), um dos seus irmãos morreu num acidente, outro matou-se e o terceiro foi preso por molestar rapazes. É o tio de Dylan. Dos 14 filhos de Mia, quatro dos quais biológicos, três já morreram, o último dos quais deu um tiro na cabeça. A idade em que Soon-Yi começou a relação com Allen, e chocou tanta gente, é a mesma idade em que Mia Farrow se casou com Frank Sinatra, 30 anos mais velho.
E a propósito de Frank Sinatra, talvez o elemento mais edipiano de todos seja o filho de que ainda não falei, Ronan.
7. Ronan Farrow, que no dia do alegado abuso tinha apenas 4 anos, foi o que menos tempo de vida passou com Woody Allen, mal o conhece. Mia manteve-o afastado. Sendo que é o único filho biológico que teve com Allen. Ou talvez não. Pois numa entrevista Mia Farrow resolveu dizer que é “possível” que Ronan afinal seja filho de Frank Sinatra, com quem, diz ela, nunca realmente terminou. Confusos? Sim, esta mulher indignada com a imoralidade de Allen, furiosa por ele ter iniciado uma relação com Soon-Yi, não viu problema em plantar, en passant, numa entrevista, a dúvida sobre a paternidade de um dos seus filhos. Nem do ponto de vista do filho, nem do ponto de vista do homem com quem estava então. Se Ronan é filho de Sinatra, Mia andou a dormir com Sinatra nas barbas inexistentes de Allen, o imoral traidor. Mas a verdade é que Mia também não viu problemas em ficar ao lado de Polanski quando ele foi acusado de violação.
Nancy Sinatra, filha de Frank, achou uma irresponsabilidade, e sobretudo impossível, aventar a hipótese de que Ronan possa ser filho de Sinatra, porque nessa data ele já teria feito uma vasectomia.
Que disse Ronan? Assobiou para o ar. Oh, de certa forma somos todos filhos de Sinatra, comentou. A sua relação com Allen é zero, que poderia dizer?
Se não estão a ver a cara dele, vejam. É um jovem galã de olho azul. Mais para Sinatra que para Allen, definitivamente.
8. Mas há mais. Ronan Farrow é o Ronan Farrow que denunciou os abusos de Weinstein na “New Yorker”. O filhinho de 4 anos, cresceu e além de galã tornou-se repórter de investigação. Escrever na “New Yorker” não é para todos, mesmo que ele nunca tenha sido propriamente todos. E ser autor do texto mais lido do ano na “New Yorker” antes dos 30 anos é para raros, mesmo.
Então o filhinho mais jovem naquela casa, no dia do alegado abuso, cresce e torna-se o denunciador do maior escândalo de Hollywood. Ronan, aliado indefectível de sua mãe, é de facto o autor do texto — na verdade, um dos dois textos, porque o “New York Times” fez uma investigação paralela — que criou toda a atmosfera em que agora a sua irmã Dylan voltou, aos prantos, para dizer uma vez mais: como é possível que o mundo me ignore? Ela também disse que nunca foi entrevistada pelos peritos que investigaram o caso, então. Mas só o relatório de Connecticut menciona nove entrevistas com ela.
Acredito na minha irmã, diz Ronan. É compreensível que sim, apesar de todos os factos em contrário. Compreensível, pensando que ele cresceu vendo Allen como Homem-do-Saco. Tal como é compreensível que Mia tenha ficado furiosa ao descobrir o caso com Soon Yi. Mas o que se faz com isso ao longo de mais de 25 anos é outra coisa. Mais de 25 anos e várias vidas.
9. Nos últimos dias, mais celebridades de Hollywood vieram a público dizer que não vão voltar a trabalhar com Woody Allen. Os dois protagonistas do seu último filme anunciaram que vão dar o que ganharam a instituições de caridade, porque não querem lucrar com o molestador. Isto é Hollywwod, caminhando com o vento, o sistema reciclando-se como sistema. O que mudou para estes actores há um ano acharem bem trabalhar com Woody Allen e agora não? Subitamente acreditaram numa acusação com 25 anos que foi duplamente investigada e descartada, sem que haja qualquer elemento novo?
A caixa de Pandora está aberta. Se qualquer pessoa pode decidir, ao fim de 25 anos, que Allen é culpado de uma coisa que foi investigada e descartada, valerá tudo. Ou seja, investigação, peritos, tribunais, justiça, valerão nada. Toda a gente pode escolher aquilo em que acredita, ou passa a acreditar. Mas continua a haver uma diferença entre acreditar só porque a maré vira, e acreditar por causa dos factos.
Imaginem quem começa agora a ver cinema e é apresentado a Woody Allen como molestador: nunca será apresentado a Woody Allen. Boa altura para lhe mostrar os filmes, e explicar duas ou três coisas sobre Hollywood. Sobre as pessoas, em geral.
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