O projecto europeu, que era um sonho hippie de paz, amor e prosperidade, transformou-se num emaranhado de contradições que só podem agravar-se. As razões são muitas, mas vão sempre dar à mesma questão: a sustentabilidade económica de um modelo estratégico frágil.

Não é preciso ter lido Arnold Toynbee – o historiador inglês que escreveu 12 volumes sobre a ascensão e queda das civilizações  – nem ter um apurado senso comum, para perceber que a Europa, ao tornar-se a civilização mais evoluída, confortável e progressiva, está a caminhar para o declínio.

Na luta darwiniana pela sobrevivência, são os fortes que perduram, não os edonistas. Como é possível a União Europeia, um sonho impossível que se tornou viável a partir de 1957, prosperar sobre duas premissas: a dependência energética dos seus inimigos e o poderio militar dos seus aliados? 

Para viver no luxo, os europeus usavam a energia vinda da Rússia e da África; para não terem de lutar por esse luxo, contavam com a protecção dos Estados Unidos. Só assim podiam consumir os mais requintados produtos vindos de todo o mundo sem gastar um centavo ou uma gota de suor a preparar a sua defesa.

No seu interior, a Europa tem problemas, com certeza; a deserção estúpida (não há outro adjectivo) do Reino Unido, o perigo anti-democrático de partidos nacionalistas e autoritários, como o Fidez na Hungria, ou o Rassemblement Nacional em França, ou ainda o Forza Itália, e a entrada maciça de imigrantes de países pobres, atraídos pelo imã irresistível de uma vida melhor. A estes problemas, o conjunto de estados-membros tentou responder com um novo conceito, quase contra-natura: o consenso. Umas vezes funcionava, outras não resolvia grande coisa, mas a União lá ia singrando.

Este quadro semi-idílico começou a desmoronar-se rapidamente com aquilo a que podemos chamar, romanticamente, de “os ventos da História”. Uma pandemia universal que criou o pânico e exigiu medidas dispendiosas para a conter, ao mesmo tempo que gerou perturbações imprevisíveis na produção e no mercado de trabalho. devido O consumo excessivo dos recursos naturais levou agravamento acelerado das condições climáticas. A mudança estratégica dos Estados Unidos, que deixaram de ter capacidade para impor o seu sistema ao mundo, ou porque não querem (Trump), ou porque não conseguem (Biden). E, finalmente, aquilo que era inexorável: o reacender das ambições expansionistas da Rússia, a qual, em todos os seus regimes desde Catarina a Grande (1762-1786), sempre teve uma relação amor/ódio com a Europa, a vontade de integrar a cultura europeia e, simultaneamente, de a destruir ou conquistar.

Mais uma vez, não é preciso ser presciente, vidente, ou super-inteligente para ver que há atritos históricos que nunca mudam. Putin é apenas a última versão da famigerada filosofia do império euro-asiático, que vai de Lisboa a Vladivostok, com o centro em Moscovo. Nunca se concretizou, e dificilmente se irá concretizar na competição de poderes do século XXI; é mais inevitável que seja a China o próximo império dominante. No entanto está lá sempre, como na Turquia, que alterna entre a ocidentalizalização e o Islão.

Mas Putin, por razões que só ele sabe, resolveu tentar novamente, começando por reconstruir o falecido império soviético, de Vladivostok a Praga, a Oeste, e à Geórgia e Arménia, a Sul. Não lhe está a correr bem a iniciativa, como também seria previsível. A tentativa inicial de anexar a Ucrânia arrasta-se com probabilidades de durar indefinidamente. 

Contudo, os efeitos desta aventura são imediatos, globais, e particularmente danosos para a União Europeia. 

A Europa importava 40% do gás que consome da Rússia. Na Alemanha, a percentagem era de quase 50%; na Finlândia, 94%. Quanto ao petróleo, importa 62% de fora; da Rússia, 2,2 milhões de barris de crude (não destilado) por dia.

Assim como a Europa precisa destes produtos para produzir (e consumir) também a Rússia precisa de vendê-los; representam 2% do seu Produto Interno Bruto. Daí que, apesar das afirmações europeias de que vai deixar de importar da Federação Russa, continue a fazê-lo; e os russos, que gostariam de castigar a UE com uma suspensão total, não podem perder as receitas que alimentam a sua guerra. 

Neste vai-e-vem de interesses contraditórios, as importações europeias têm diminuído, mas não tanto como gostaria, e as exportações russas diminuem, mas não param. É que se chama em inglês de uma situação “lose-lose” – todos perdem.

Na última reunião das autoridades europeias, os alemães propuseram uma redução de 15% do consumo de gás natural para todos os países membros, mas Portugal, Espanha, Hungria e Grécia objectaram. O argumento dos ibéricos é que não precisam tanto das importações russas. Portugal importa 53% de gás natural da Nigéria e 9,3% da Argélia; a Espanha importa 29% da Argélia e 12% da Nigéria.

O argumento pode ser válido economicamente, mas é politicamente incorrecto, uma vez que o esforço da redução de consumo deveria ser igual para todos. Aliás, o "nosso" simpático Galamba afirmou que "é insustentável, porque nos obrigava a ficarmos sem eletricidade". Quer dizer, os europeus todos podem "ficar sem electricidade" mas Portugal, essa "powerhouse" industrial, não pode... Teresa Ribera, a ministra da Transição Ecológica espanhola, queixa-se de que não foram avisados e de que as famílias não podem sofrer cortes nas suas casas.

É caso para perguntar porque é que os ibéricos não acham que têm de sofrer como os outros membros. A Alemanha, quando foi preciso, ajudou os dois países em dificuldades, mas isso foram outros tempos.

A Hungria não concorda porque depende do gás e petróleo russos 100% e porque Orban simpatiza com Putin. A Grécia tem um plano de contingência próprio que envolve uma rotatividade de cortes, e acha que é melhor para ela do que o plano geral.

Estas situações mostram como começam a surgir fissuras não tão necessária unidade entre os países membros, ainda a procissão vai no adro. Lá diz o ditado: "Em casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão". É com isso que Putin está a contar.

Um efeito altamente perigoso da redução de combustíveis é o aumento de preço, levando a uma inflação altíssima. Como o valor dos combustíveis afecta toda a economia, não só na produção de bens como no seu transporte – isto é, os bens que não são produzidos com petróleo ou gás também têm se ser movidos de um lado para o outro.

Outro efeito negativo é a necessidade de abandonar os objectivos de redução de dependência dos combustíveis fósseis. As metas para 2035 e 2050 já não são possíveis.

Também neste campo a Alemanha cometeu o erro estratégico de abandonar as centrais nucleares, que seriam uma alternativa limpa para a produção de energia. Actualmente só tem três a funcionar, programadas para fechar até ao fim do ano. Já a França tomou a decisão contrária, mesmo anteriormente à situação na Ucrânia, e continua a apostar no nuclear. Tem várias mini-centrais programadas.

Uma inflação alta, que prejudica sobretudo os mais pobres, pode levar a perturbações da ordem pública. Isso já se verifica no Reino Unido – cuja inflação tem origem diferente – mas é uma ameaça em todos os países, da Europa e do Mundo. A guerra da Ucrânia reduziu substancialmente o fornecimento de trigo aos países que mais precisam, como o Egipto e a África em geral, provocando inflação e fome. Não há pão, ou não há dinheiro para o comprar.

Na Eurozona, a inflação foi de 8,6% em Junho (número do Eurostat). É um valor que não se via há décadas e que obrigará o banco, assim como os bancos nacionais, a subir as taxas de juro. A subida das taxas baixa os preços, mas pode levar a uma recessão. Para 2022, prevê-se já uma redução de 1,5% do Produto Interno Bruto europeu. Isto está tudo ligado…

As consequências do arremedo imperial de Putin são inúmeras, umas calculáveis, como a redução das metas ambientais, outras imprevisíveis, como a inflação. Todas são más. (Nada que se compare com o que os ucranianos estão a passar, convém não esquecer.)

Contudo, uma coisa é certa: no próximo Inverno a UE vai passar um aperto, a vários níveis (produção, qualidade de vida) que pode provocar situações malsãs: diminuição do apoio dos europeus à desgraça ucraniana; brechas na unidade do bloco em relação à insistência de Kiev em não fazer concessões territoriais a troco da paz; perturbações na rua, manifestações e reclamações por causa da carestia de vida; subida do eleitorado de extrema-direita. 

Putin não vai ganhar esta guerra, mas o mundo vai perder, e muito. E a unidade da União Europeia mostra-se cada vez mais precária. Winter is coming.

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