As línguas, meus caros, são mesmo umas bastardas. Reparem: o português julga que vem do latim, essa língua imperial, mas nem sempre se lembra que o latim era outro: não o latim dos intelectuais romanos, mas a língua do padeiro. E do ferreiro. E da mulher da vida. E do soldado. Sim, também temos Cícero a correr nas veias da língua, mas menos do que gostam de imaginar os que sonham com uma qualquer nobreza do português.
Mas, mais: depois de cozer a língua na Galécia, misturámos esse nosso galego com uns pós de árabe – e nem sequer era bem o árabe, mas sim os pedaços de árabe que já vinham misturados, como pedaços de chocolate numa bolacha, no moçárabe, a língua do povo do Sul da península.
Durante séculos, o nosso português era a língua vulgar e o antigo latim continuava no seu trono. Enfim, lá se tornou oficial e, mais tarde, inventámos algumas palavras a soar a grego e também fomos outra vez ao latim para lhe dar um ar mais cultivado…
Mas não nos enganemos: a língua continuou a ser um bicho sem tino. Importámos palavras de todo o lado. Até Os Lusíadas têm palavras de muitas paragens (e castelhanismos de sobra).
Então se nos afastarmos da língua escrita, se olharmos para a língua da rua, essa sempre se misturou, sempre se deixou levar por manias e modas, sempre pisoteou todas as ideias de pureza. Lá vieram palavras do francês, do italiano, do inglês, das línguas índias e muito mais (mas descansem, meus caros, pois também oferecemos palavras a outras línguas: ao inglês, ao castelhano, ao francês – até ao japonês).
E, claro, depois, nas naus, lá foi o português e lá se espalhou pelo mundo, e em todo o mundo se misturou e se pintalgou: a nossa língua também é mestiça, ó gente armada ao puro!
Sim, eu sei: se a língua nasceu na rua, os escritores e os gramáticos deram-lhe lustro, limaram-lhe as arestas, escolheram isto em vez daquilo. Mas a verdade, também, é que a literatura se alimenta dessas correntes obscuras, da língua doutros sítios, doutras gentes – não é de todo feita duma linguagem depurada: muito antes pelo contrário. Poucos bons escritores conseguiriam escrever se a língua fosse qualquer coisa de artificial ou um bicho domado. Não: a literatura vive desse bicho selvagem criado nas ruas, nas camas, nas noites – a língua de todos, de quem insulta e ama, de quem vende e compra – e por isso tem de misturar, aprender, mudar –, de quem tem pouca paciência para queixas, de quem precisa, agora, de falar, às vezes à pressa, muitas vezes com um sorriso na boca, ou um grito, ou um segredo, ou um beijo.
Somos só nós que somos assim? Não. O português não está sozinho: o inglês, por exemplo, a língua que agora anda nas bocas do mundo, chegou àquelas ilhas britânicas como língua dum povo guerreiro, estragou-se com os Celtas e os Viquingues, que lhe esfacelaram a gramática toda, andou à rédea solta enquanto os nobres falavam normando, absorveu palavras latinas, francesas, até portuguesas. Hoje, é uma manta de retalhos em que o tecido original, muito germânico, já está cheio de remendos de todo o tipo. E alguém perde alguma coisa com isso?
O mesmo podemos ver no espanhol, no francês (até no francês!), no italiano – e em todas as outras línguas. Mesmo o esperanto não passa duma mistura estranha de muitas línguas, só que em vez de cozinhada na cabeça de milhões, foi na cabeça de um só homem.
As línguas ficam mais pobres com estas misturas todas? Claro que não! A ideia de pureza linguística é como todas as outras ideias de pureza: extraordinariamente sedutora, mas perigosa, daquele perigo mau, que às vezes até acaba em tragédia. É uma mania que não ajuda ninguém e só nos deixa enervados uns com os outros.
Por isso, ó gente que sonha com uma língua impoluta, sem misturas, sempre no mesmo registo, sem palavrões, sem expressões populares, sem um ou outro absurdo, sem redundâncias, sem palavras que querem dizer a mesma coisa, sem estrangeirismos, sem pronúncias diferentes: percebam duma vez por todas que o português, como todas as línguas, é um fenómeno natural, um sistema complexo e desordenado, que podemos estudar, usar, moldar para nosso proveito – mas que dificilmente podemos controlar. Podemos (isso sim) conhecer e até amar esse bicho bastardo. Cada um de nós pode ainda – aliás, deve – falar e escrever cada vez melhor a língua que nos calhou na rifa. É bastarda, mas é nossa.
Sim, temos de ter uma norma-padrão, o português seleccionado que serve para as situações formais e académicas – e é a base da escrita, essencial à civilização. Quanto mais pessoas a conhecerem, mais pessoas têm acesso à discussão pública. A norma-padrão é um instrumento essencial – mas não se convençam que é sagrada e, acima de tudo, não tentem reduzi-la ao mínimo, não tentem cortá-la até ficar sem vida. A norma pode ser mais ou menos rica – e quanto mais pura, mais pobre será. Sim: mesmo à norma, quando a conhecemos de trás para a frente, fica bem dar-lhe um pouco de sangue, esticar um pouco a corda. Arriscar. Misturar. Sem medo. Querem protegê-la? Escrevam mais, leiam mais, trabalhem! Não desatem a querer cortar à língua palavras e expressões por esta ou aquela razão, deixando a norma mais pobre e mais distante da língua de todos.
É verdade, admito: isto vem muito a propósito do estardalhaço que li por causa duma simples palavra numa notícia – muita gente se queixou porque o jornalista, em jeito de brincadeira, tinha usado a palavra «deslargar».
Fiquei pasmado com o exagero das reacções. Uma pequena brincadeira, um pequeno risco que um jornalista decidiu correr – e vem a correr a brigada da língua, cheia de discursos inflamados a acusar os falantes da língua de todas as patifarias deste mundo. São os discursos habituais, que se viram contra a própria língua com a desculpa de a proteger. Lembrei-me logo das reacções de alguns amigos meus quando ouvem a expressão «o comer», que é popular, claro está, mas é tão portuguesa como «o saber», «o olhar» e todos esses verbos saborosos que transformamos em nomes. Nunca deixo de ficar espantado com o ódio que algumas pessoas reservam para as palavras dos outros.
Quando vejo tanta gente a atacar os outros por falarem português, tanta gente a atarefar-se a mudar a língua para a tornar mais lógica, mais pura, mais pequena, penso: quem salvará a língua de quem quer salvar a língua?
O que vale é que a língua é mesmo um animal selvagem: lá dá uns coices e continua, matreira e bastarda, saborosa todos os dias. E nós, com ela nos lábios, lá escrevemos, conversamos e damos beijos em bom português – e esquecemos esses tontos que a querem prender à força. Porque a língua é bastarda, sim senhor – e deliciosa para quem a souber ouvir.
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é História do Português desde o Big Bang.
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