À pergunta “Que dia é hoje?”, responderei “É só o dia que precede o 22 de Março”. É que amanhã não é um amanhã qualquer. Amanhã é dia duma árvore frondosa, de folhas perenes e raízes inabaláveis; amanhã a poesia é elevada e nós estaremos, enlevados, a colhê-la; amanhã o Dia do Pai estica-se para alcançar a Noite do Patriarca. Amanhã o Bob Dylan regressa a Portugal.

Não é a primeira vez que aqui me dedico ao bardo norte-americano, mas ao invés de repetir os dogmas da minha adoração, o que agora reitero é a necessidade de contenção. Por muito que escreva, tudo não passará dum esforço contido perante a torrente de argumentos que o Bob Dylan me inspira. Consciente da impossibilidade de registar tudo o que tenho vontade (necessidade, urgência) de dizer, ainda assim não evito este curto relato dum episódio ocorrido na semana passada.

 Numa viagem com dois amigos músicos - ela e ele notáveis escritores de canções e pessoas muito sensíveis às palavras que se cantam - o Bob Dylan trouxe uma caricata desarmonia. O meu amigo e eu fingimo-nos chocados (ou, pelo menos, exagerámos as expressões de choque) ao perceber que a nossa conviva não só se está a marimbar para o concerto do velho Bob no dia 22 como, de uma forma geral, se está a marimbar para o velho Bob. “O Dylan nunca me disse nada.” – explicou ela. É uma boa declaração de subjectividade para inviabilizar o contraditório e fechar a conversa. Mas o que a minha amiga comentou a seguir abriu, pelo menos, uma brecha para a futura argumentação. Parafraseio-a: “Até admito que me escapa alguma coisa, porque quase todas as minhas referências musicais têm o Dylan como referência”.

(Pausa para ouvir o Johnny Cash e a June Carter numa versão da “It Ain’t Me Babe”)

Há núcleos onde me insiro que são absolutamente minoritários. Nenhum deles é étnico, logo torna-se aceitável dizer que estou lá por opção. Quando não nos envergonhamos daquilo que nos torna diferentes, normalmente cultivamos fervor por essa diferença – as opções minoritárias, mais divergentes, ou mais exclusivas, não poucas vezes tornam-se também nas mais aguerridas, nas que mais se apregoam. Fazemo-nos especialistas daquilo em que somos particulares; a pequena caixa onde nos enfiámos passa a ser tratada como baú dum grande tesouro.

Com o Bob Dylan passa-se esta novidade: tenho um fervor minoritário por um artista consagrado, muito pouco minoritário. Trato a minha afeição pelo músico como uma jóia rara, mas de rara tem pouco – é exactamente a mesma afeição que os meus pares também entesouram. E quem considero meus pares? Com todo o pretensiosismo, os meus pares estão resumidos naqueles amigos da viagem, “pessoas muito sensíveis às palavras que se cantam”, pessoas cujas referências musicais “têm o Dylan como referência”.

Então para quê impingir o músico num universo que já o adora? Este proselitismo no meio dos convertidos não é uma perda de tempo, é antes uma inevitabilidade. Tem paralelo num velho resumo protestante: devemos praticar o Bem, não porque ele nos leva a algum lado, mas porque o lado onde já chegámos nos dá essa vontade. Dá-nos esse esclarecimento. Dá-nos essa natureza. O Dylan do período gospel teria feito este resumo com maior pungência. O de agora também.

(Pausa para ouvir o Dylan em grande forma ao vivo em 1981)

Fervor e abnegação a partilhar um bem - é desta forma muito (p)resumida que justifico o tema de hoje. Embora eu me finja um fanboy sem critério, e por muito que eu use uma retórica idólatra, no fundo sou movido por altruísmo. Quero difundir aquele que considero o maior de todos, quem me censurará? Há uma montanha de músicos a corroborarem a minha distinção. Há até um comité Nobel que não me deixa ficar mal.

Esta coisa clássica dos músicos serem fãs do Bob Dylan permite-me arriscar uma brincadeira. Não tenho qualquer maneira de confirmar os resultados, mas ainda assim vou fazer apostas. Com todos vocês que não são fãs de Dylan, aposto o seguinte: aposto que o vosso artista de música popular preferido é fã do Dylan. Ou, pelo menos, aposto que o vosso artista preferido tem por referências musicais muitas pessoas que são fãs do rei Bob. Dylan é passado de músico para músico, de geração para geração, de influenciadores para influenciadores – nesta sucessão imagino um esquema da pirâmide, e o “maior de todos” andará naturalmente num lugar cimeiro a receber créditos.

Mais: tenho quase a certeza que há músicos que ficariam chocados ao saber que os seus fãs não gostam do Dylan. Já os imagino indignados a questionar “Como é que eu posso querer os vossos ouvidos se vocês não têm estômago nem coração para o maior de nós todos?”. Eu sei que estou a ir longe na fantasia, mas é só para me sentir legitimado em cenários que conheço: a próxima vez que ouvir alguém afirmar “O Dylan nunca me disse nada.”, eu poderei responder “Tem juízo!!”.

AS 3 MELHORES CANÇÕES DE SEMPRE DO BOB DYLAN NESTE MOMENTO

Só não estou em pânico, nem a sentir que faço uma “escolha de sofia”, porque seguramente voltarei a escrever sobre o Dylan, e poderei reformular a lista com 3 canções absolutamente diferentes destas que se seguem.

Not Dark Yet

Quase tão grave quanto não gostar do Bob Dylan é achar que ele só fez música relevante nos anos 60. Deixei de cometer esse erro quando, aos 18 anos, me deparei com um disco do Dylan acabadinho de sair, exactamente o álbum que veio a tornar-se mais vezes no meu preferido. “Time Out Of Mind” (1997) é um conjunto de canções inigualável, tematicamente amadurecido, esteticamente perfeito (para isso muito ajudou a produção de Daniel Lanois). Podiam distinguir-se várias canções desse disco, mas “Not Dark Yet” ficará para sempre como uma das melhores de todo o espólio dylaniano. Sombria, resignada, mas eloquente e cheia duma dignidade que comove. O tema da morte, curiosamente, soa melhor naqueles que desejamos imortais.

Every Grain of Sand

Reflecte um salmo, com toda a confissão davídica que isso implica, mas também a dúvida, a grandeza da missão e a pequenez da natureza. É uma canção perfeita – certa vez li o Howe Gelb a dizer isto, mas nem sequer estou a citá-lo, só a afirmar paralelamente o mesmo.

Contém um dos meus poemas preferidos e o solo de harmónica mais sincero que alguma vez ouvi. Sei que “solo de harmónica mais sincero” pode ser a maior treta que leram na última década, mas desafio-vos a irem comprar o disco “Shot of Love” (1981) e a porem a tocar a “Every Grain of Sand”. Digam-me depois se é treta.

Every Grain of Sand - Bob Dylan from Temuco Blues on Vimeo.

Like a Rolling Stone

Tinha de pôr pelo menos uma que fosse óbvia. Curiosamente, apercebi-me da força da canção quando a escutei ao vivo interpretada pelo Jorge Palma – aquilo era rock de fazer-me querer arrancar as cadeiras do recinto; o fogo nos olhos do Palma também não enganava. A força emancipadora que eu tinha sentido com a “Smells Like Teen Spirit” dos Nirvana estava ali, e eu já quase não era adolescente - não era suposto ser tão forte o impulso. Um hino disruptivo escrito nos anos 60 mas feito para sempre.

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