Esta particular alegria (que não é só estrepitante, excêntrica e fugaz como um fogo de artifício, é ela própria sincronizada com fogos de artifício) tem a indignidade e a falta de compostura de qualquer outra alegria. Não é falsa só por ser previsível, nem é mais ou menos embaraçosa por ser auto-infligida. A verdade é que temos sempre uma reserva de alegria premeditada, pronta a disparar ao nosso comando, e que nos torna tão momentaneamente alegres como os genuinamente alegres. E qual o mal? Nenhum; também somos assim com a ira.

Não sou uma pessoa irada, não por natureza, mas se estiver encurralado para dar uma opinião talvez o seja. Disparo a ira. Os meus pareceres sobre o estado das coisas, quando oficiais ou solicitados, costumam ser pareceres sobre o mau estado das coisas. Ando pelas ruas a assobiar com um país debaixo dos pés, mas se me indagam acerca do que se passa nesse país, por norma activa-se a resposta menos assobiável (ainda que seja uma lengalenga  chateada que todos sabem trautear). In vino veritas, no fel a opinião.

Por exemplo, como é que estabelecemos empatia com um condutor de táxi se não forçarmos irascibilidade em causas comuns? Agasta-me bastante esta Lisboa em estado de sítio com tantas obras mas, se converso com um taxista, esse agastamento tem de atingir proporções de calamidade. E os Tuk Tuk que tão militantemente ignoro no dia-a-dia? – dentro do táxi é mais isto: “Já viu, senhor taxista, tanta falta de legislação? Se algum dia há um acidente com um turista estrangeiro lá dentro eu quero ver como vai ser... Um carrinho de lata destes virado ao contrário, sem segurança nenhuma... Quero ver. Agora riem-se, depois choram!”

Sei que não sou um caso isolado. O que já não sei é que parte melhor nos define, se a pacatez privada se a inflamação pública. Quando uma nos parece intrínseca, é a outra que determina o nosso papel no mundo, e são ambas tão automáticas que nos controlam mais do que nós a elas. É nesta indefinição que o mundo se torna tão imprevisível. Foi também por aqui que 2016 nos pasmou -  esqueçam as individualidades, a real surpresa adveio das vontades das massas, gente indistinta com personalidades impossíveis de prever. Com pessoas assim, capazes de ficarem zangadas, as urnas mais parecem tômbolas.

O que aconteceu no Brexit ou nas eleições norte-americanas só surpreendeu porque, muito provavelmente, fizemos ouvidos de mercador ao coro dos zangados. Todos temos capacidade de desligar a atenção quando ao nosso lado um cônjuge, um pai ou um filho desatam a disparar queixumes, sermões ou birras. Ora, o que fizemos – nós os analistas de sofá, e os outros – foi desligar a atenção a birras que pareciam da boca para fora, mas que afinal foram da boca para dentro das urnas. Não só isso; mesmo atentos ao populismo, quase esquecemos que ele não se alimenta apenas dos medos das pessoas, ele também nutre de volta esta necessidade tão humana de nos zangarmos. Até a demagogia mudou: já não está na linguagem de mel a prometer pão, agora oferece rolos para cilindrarmos (com ira) a massa do pão que alguém nos anda a roubar.

Não há desculpas para desatenções em 2017. Não há espaço para surpresas, nem forma de continuarmos a hostilizar os hostis. A democracia só é o melhor sistema político porque tem espaço para ser amarga; dá espaço aos amargos. Com eleições este ano na França, Alemanha, Holanda, e Itália logo a seguir (só para referir alguns países europeus), há que escutar com seriedade os argumentos dos partidos populistas, dos eurocépticos, dos xenófobos, ou dos que são a súmula disto tudo. Há, sobretudo, que deixar de menosprezar e ostracizar os votantes desses partidos, mesmo que o incompreensível pareça dificultar tal missão. Para que as mudanças não sejam tão calamitosas (como o trânsito em Lisboa) teremos que estar disponíveis a mudar também, a querer adoptar e nem sempre a adaptar o outro. Acartar, nem sempre apartar.

Cansa-me, cada vez mais, a defesa das ideologias que se querem servidas em vez de servir. Zanga-me. É pelo oposto que o sentido prático dos populismos se torna tão sedutor. Do lado errado da História andam a oferecer-se sacos de boxe, ouvidos e megafones em chamas para pessoas irritadas . Do lado certo parece que só se oferece o lado cego. Zanga-me. “Irai-vos mas não pequeis”, diz o rei David no Salmo 4, salmo tradicionalmente recitado antes de se ir dormir. Isto sempre foi um festival para gente zangada, não vamos lá com canções de embalar.

SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO

Quase um ano depois de nos ter deixado, Bowie continua a ser um dos nomes mais falados – não só nestes penosos obituários do final de 2016 mas também, muito justamente, pela inclusão de "Blackstar" nas listas de melhores discos do ano passado. Aqui fica uma olhadela pela sua surpreendente colecção de arte.

Uma das mais notáveis propostas colectivas da editora de BD Chilli com Carne, “Lisboa é very very typical” é uma colectânea da visão de autores estrangeiros sobre a capital portuguesa. Os relatos e os estilos são variados e podem testar a nossa própria visão sobre a cidade.

O cinema foi-se, diz Scorsese.

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