
Em dois mil anos, a Igreja Católica Apostólica Romana teve 266 Papas (contando com o agora falecido Francisco) e, mantendo o essencial dos seus preceitos, passou por todas as fases que tamanha organização pode viver: expansão, domínio, contradições, ataques, intolerâncias (dela e contra ela), divisões, heresias e, ultimamente”, uma certa decadência. Quer dizer, deixou de ter o poder de vida ou de morte de há 300 anos e também de atacar militarmente os “inimigos”, como fez durante séculos. Tornou-se uma organização “boazinha”, não agressiva, à semelhança do mundo Ocidental onde tem a sua sede, o Vaticano. Mas espalhou-se pelos cinco continentes, com brutalidade e, depois, com compreensão.
Uma característica distinta do catolicismo é ter um único chefe, seguido por uma hierarquia rígida (que eu saiba, só o budismo tibetano é assim). Os muçulmanos e os judeus têm um sistema mais descentralizado. Esse chefe, o Papa, é infalível no que toca a assuntos religiosos. Esta qualidade é importante, porque o que o Papa decide, mesmo que haja muitos cardeais que discordem - é a voz de Deus.
Tudo isto para chegarmos a Francisco, um Papa diferente dos seus antecedentes, que afrontou alguns dos tabus eclesiásticos - embora por vezes tivesse perdido a disputa, pelo menos na prática.
Um exemplo recente, que abalou a Igreja, foi a decisão do Concílio Vaticano II (1962-65, Paulo VI) de que a missa poderia ser celebrada na língua do país (em vez de latim), além de outras modificações no direito e praxes canónicas que provocaram uma autêntica revolta nos círculos mais conservadores. Mas os católicos esperavam que a contracepção (preservativos e outros métodos “activos de evitar a gravidez) fosse reconhecida e, como não foi, provocou milhares de “deserções”.
Ora bem, Francisco, (o primeiro Papa da América do Sul) começou por ser uma surpresa, uma vez que o anterior, Bento XVI, era considerado muito conservador. A primeira diferença evidente era a sua humildade: vestia-se o mais simples possível e resolveu viver num convento de freiras dentro da cidade do Vaticano em vez dos sumptuosos aposentos papais. (Dizem que tomava as refeições no self service do convento para não ser envenenado, mas isso são más línguas.) Castigou cardeais que levavam uma vida faustosa, tratou dos desvios de fundos de outros e, coisa espantosa, nomeou duas freiras para cargos executivos de alta responsabilidade. Viajou pelo mundo, sorria muito (os Papas, por qualquer razão, em geral não sorriem), gostava de falar com as pessoas - era simpático, igual a toda a gente.
Nas questões que mais têm afastado a Igreja da vida contemporânea, como a homossexualidade, primeiro decidiu que os casais do mesmo sexo podiam ser abençoados na sacristia (depois teve de voltar atrás e abençoar cada um separadamente) e permitiu a comunhão a casais de divorciados. Fez muitas mudanças deste tipo, algumas tímidas, outras recuando, mas sempre a insistir numa mudança. É fácil imaginar as lutas internas no Vaticano entre progressistas e conservadores - como dizia um amigo meu, que podem fazer um grupo de homens vestidos de seda vermelha fechados dentro dum palácio se não mexericar e mover influências?
Francisco foi o Papa que mais viajou e reuniu-se com os principais líderes de outras religiões (como disse, essas religiões não têm um chefe único), promovendo o ecumenismo. Ao afirmar que os “bons” de qualquer religião também têm acesso ao Céu, quebrou um tabu com dois mil anos.
A Igreja de Roma é universal, não é só nas salas do Vaticano que há debates sobre este mundo sempre em mudança. Os cardeais do continente africano são muito conservadores, sabe-se. Os do continente norte-americano têm o poder do dinheiro. Os cargos e funções sobrepõem-se, facilitando a luta pelo espaço. Mas o Papa Francisco saiu-se bem numa imagem geral, considerado uma boa pessoa, preocupado com os males deste mundo, e males não faltam. A sua mensagem, não podendo ir muito mais longe, foi de paz e concórdia, de preocupação com os desvalidos e abandonados, de melhoria das relações hostis entre poderes e países.
Agora o que toda a gente espera ansiosamente é a escolha do novo Papa. Pode levar dias, meses e até anos (embora seja improvável). Há fortes candidatos conservadores e progressistas - a diferença é essencial para sabermos se o catolicismo consegue acompanhar o nosso tempo ou insiste em dogmas milenares que perderam o sentido - como a ordenação de mulheres, por exemplo. Este tema não tem argumentos pró e contra, como é o caso do casamento homossexual ou de divorciados, contracepção, IVG ou a eutanásia. Ao princípio, antes de conquistar Roma, a Igreja Católica tinha mulheres, como o prova uma carta de São Paulo. E não há razões religiosas ou morais que o impeçam; é apenas uma questão de “opinião”.
Muitos crentes esperavam que Francisco autorizasse a ordenação feminina, mas a corrente conservadora não o permitiu. Outras “modernices”, como os padres poderem casar, nem pensar.
Qual é o legado que se pode atribuir a Francisco? A aproximação aos jovens, certamente; e a defesa constante dos pobres, crianças, sobretudo nos países envolvidos em conflitos.
A influência da Igreja tem vindo a diminuir. Em 2010, 20% dos europeus declararam-se “não religiosos”. Pode-se dizer que o poder do Papa é semelhante ao Secretário Geral das Nações Unidas; toda a gente o ouve mas ninguém cumpre o que ele pede.
Independentemente do seu poder ser apenas simbólico (facultativo, se quisermos ser irónicos) o próximo Papa poderá modificar esta situação? É impossível de prever.
Há quem defenda que, para a Igreja perseverar, ou mesmo crescer, precisa de um Papa progressista, como há quem defenda o contrário. O facto é que os católicos deixaram de ser proselitistas e convivem cada vez mais facilmente com descrentes. (Não confundir esta afirmação com os atritos crescentes com os imigrantes, que têm outras razões. Os muçulmanos são fortemente proselitistas, os budistas pouco e os judeus nada. Todos os prognósticos indicam que a Igreja Católica Apostólica Romana terá uma percentagem de fieis cada vez menor no total de todas as religiões.
Mas estarei talvez a especular; os desígnios do Senhor são insondáveis…
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