1. O exemplo do árabe

O árabe é um caso curioso que junta o processo do latim e do grego, de que falámos nas semanas anteriores.

O árabe moderno padrão, ensinado nas escolas nos países árabes, é uma espécie de katharévussa: uma versão arcaizante, conscientemente próxima do árabe clássico. O prestígio do árabe moderno padrão é tão grande que, mesmo entre os falantes, nem sempre há consciência da distância que separa este padrão do árabe realmente falado nas ruas. É possível ouvir alguns falantes árabes dizer que o árabe, ao contrário de outras línguas, não mudou ao longo dos séculos, mantendo-se mais puro do que outras línguas.

Ora, se na escrita e nas situações formais o árabe é uma língua única, na oralidade do dia-a-dia aproxima-se do latim: um marroquino, a falar na língua que fala em casa, perceberá bem um argelino, mas já terá muitas dificuldades em compreender um falante do árabe popular de Omã, por exemplo − tantas como um português terá em compreender um romeno, por exemplo.

Note-se que, ao contrário do caso do português e do romeno, os árabes aprendem uma língua comum na escola e, por isso, perante um falante de um árabe muito distante, usam o árabe moderno padrão, língua que raramente falam em casa. Tudo isto acontece de forma natural, por vezes sem consciência de haver uma mudança entre o árabe particular da sua terra e o árabe padrão.

Esta coexistência de duas línguas num mesmo território que são usadas em diferentes situações chama-se, tecnicamente, diglossia. É o que também acontece, por exemplo, na Suíça alemã, onde o alemão suíço é usado no dia-a-dia, mas o alemão padrão é usado na escrita e nas situações formais, havendo entre ambos uma distância considerável.

As gramáticas dos vários árabes − alguns chamar-lhes-ão «dialecto», enquanto outros não terão pejo em usar o termo «línguas» − são já muito distintas, havendo um certo continuum dialectal, mas também algumas formas com individualidade, o que nos permite falar do árabe marroquino, do árabe egípcio e por aí fora. Qualquer um destes árabes podia dar origem a um novo padrão, com outro nome, tal como o latim popular do Noroeste da Península Ibérica deu origem à nossa língua. Aliás, a forma do árabe falada numa ilha do Mediterrâneo, com fortes influências italianas, ganhou uma norma e um nome: falo do maltês, uma das línguas oficiais da União Europeia (para sermos mais precisos, o maltês descende do árabe da Sicília − uma observação que serve para aguçar o apetite para a História do árabe no Mediterrâneo).

O árabe moderno padrão, que une todos os países de língua árabe, permite a comunicação entre falantes de línguas orais muito distintas. A sua ligação tradicional ao árabe clássico dá-lhe uma aura sagrada − neste caso, literalmente sagrada, pois o árabe clássico é a língua em que está escrito o Alcorão. Perante a tradição religiosa e literária associada à língua escrita, é natural que muitos falantes olhem para as línguas orais, realmente faladas no dia-a-dia, como deturpações imperfeitas da língua árabe perfeita que encontram na escrita.

Ou seja, caem na tentação de associar a riqueza literária e cultural de determinada forma linguística às suas características intrínsecas, como se a gramática do árabe clássico − e do árabe padrão, por associação − fosse mais perfeita que as das línguas mais recentes.

2. Línguas mais perfeitas?

Também nós, falantes das línguas latinas, caímos nesta tentação. Quando olhamos para o latim e para o grego antigo temos, por vezes, a sensação de serem duas línguas intrinsecamente especiais, ou seja, gramaticalmente mais perfeitas e belas do que tudo o que veio antes e tudo o que se seguiu.

Esta sensação estará associada ao facto de termos acesso a esses períodos da história das línguas apenas e só através da escrita − parecem-nos línguas mais buriladas, mais contidas, menos sujeitas aos erros e às malfeitorias que vemos à nossa volta. Mas teríamos a mesma sensação perante qualquer língua se dela restasse apenas a literatura e se essa literatura tivesse a importância que as obras em latim e em grego antigo têm para nós, com milénios de leituras, comentários e estudo em cima.

Note-se que estou longe de desvalorizar o latim e o grego antigo − digo mesmo: antes pelo contrário! O que digo é apenas isto: a importância destas línguas não tem que ver com as características gramaticais das mesmas, mas antes com a beleza e o peso do que fizemos com elas. Quando temos algum tipo de investimento emocional numa língua − ou por ser a nossa língua materna ou por ser uma língua que aprendemos com gosto −, é habitual considerarmos essa língua mais bela do que as outras. Desta ilusão não vem mal ao mundo, excepto quando a confundimos com dados objectivos. Ao longo da história, a ilusão de superioridade intrínseca de determinada língua levou muitos a considerar o francês como uma língua especialmente lógica, o alemão como mais adequado para a filosofia (por ser preciso), o inglês como uma língua lógica (a tecla da lógica é batida muitas vezes), o italiano como a mais bela das línguas e por aí fora.

Não digo que não haja uns quantos pormenores gramaticais deslumbrantes. Por exemplo, tanto o latim como o grego têm casos, que nos parecem uma maneira particularmente espartana de construir as frases. Para nós, falantes de línguas mais analíticas, o latim e o grego oferecem-nos uma desafiante matemática sintáctica. Confesso: também a mim os casos me intrigam − mas, numa óptica estritamente linguística, o latim e o grego antigo não são, neste ponto, especiais. Os casos existem em muitos idiomas − e há línguas, como o basco, com um maior número de casos.

Mesmo noutras tradições, estas ilusões de superioridade intrínseca de uma língua aparecem com facilidade, como descreve Gaston Dorren, no seu livro Babel: Around The World In Twenty Languages (Profile, 2018), no que toca ao tâmil. Da mesma forma, tendemos a considerar a nossa forma particular de falar a nossa língua como a mais perfeita, tentação praticamente irresistível se a forma que nos calhou em sorte estiver próxima da língua-padrão. Esta ilusão (entre outras) é bem desmontada no livro Language Myths (Penguin, 2000), escrito por vários linguistas profissionais e editado por Peter Trudgill e Laurie Bauer.

Voltando ao grego e ao latim: também devemos evitar considerar os significados das palavras em latim e em grego como mais genuínos do que os significados que as mesmas palavras − ou outras por elas − assumiram depois, na passagem para as línguas latinas da actualidade. Os linguistas têm mesmo um nome para esta sensação de que esses significados eram, de alguma forma, melhores do que os nossos novos significados: estamos perante a falácia etimológica, a crença de que o significado verdadeiro das palavras está nas formas mais antigas.

Temos de admitir: é difícil resistir à tentação de ver os significados mais recentes como deturpações − mas lembremo-nos de que, no latim como em todas as línguas, muitas palavras provêm de formas mais antigas, com alterações mais ou menos radicais de significado. Afinal, até a palavra latina para "filho" veio da palavra para "sugador" no proto-indo-europeu. A avaliar pela amostra do que aconteceu entre o indo-europeu e o latim, até fomos meiguinhos com o que fizemos às palavras dos Romanos.

Nada disto deve ser interpretado como uma forma de diminuir a importância do latim na história da nossa língua. Não só a língua nos dá acesso a uma literatura e a uma cultura que são bases da nossa cultura (e o mesmo se poderá dizer do grego, de forma diferente), como, linguisticamente, constitui uma fase fulcral do desenvolvimento da língua, que está disponível na escrita (ao contrário de outras fases), permitindo-nos compreender a história de muitas das palavras e dos conceitos que hoje usamos. O próprio reconhecimento das mudanças de forma e de significado de algumas palavras do latim até hoje só é possível se conhecermos a língua. Em suma: este capítulo é uma homenagem ao latim, o nome de uma fase riquíssima da nossa língua.

  1. Erros de latim (ou as sementes das línguas)

Volto à pergunta: será possível manter uma língua parada durante séculos? Se uma língua for convenientemente ensinada nas escolas, será possível cristalizá-la numa forma estável, tanto na escrita como na oralidade?

A mesma pergunta de outra maneira: seria possível que falássemos ainda hoje o mesmo latim dos Romanos se o Império Romano tivesse sobrevivido (e tivesse boas escolas)?

A resposta só pode ser não.

A gramática da nossa língua materna, por mais arrumações e acertos que se façam, não é aprendida, nos seus aspectos fundamentais, na escola − na escola aprendem-se os registos mais formais e a escrita. Mesmo imaginando um sistema escolar perfeito, onde toda a população aprenderia a escrever sem escolhos, seria praticamente impossível travar a mudança linguística.

Mesmo que o Império Romano não tivesse acabado, o latim que hoje falaríamos seria muito diferente do latim clássico − tal como o árabe de hoje não é a língua do tempo de Maomé, nem o grego moderno é o grego de Péricles. Talvez tivéssemos um latim da escrita ou das situações formais e outro latim (ou vários latins) na boca dos falantes − no fundo, a mesma situação do árabe de hoje.

Afinal, mesmo quando ainda só se escrevia em latim e esta era a língua que todos diziam falar, já tínhamos várias formas da língua: a língua da escrita não era a mesma que a da oralidade. As habituais queixas pela forma como se fala hoje em dia são especialmente reveladoras. O manuscrito Appendix Probi é uma lista de palavras erradas criada numa época incerta, mas que terá sido ou nos últimos tempos do Império ou nos primeiros séculos depois da queda. O certo é que vemos muitos erros de pronúncia como verdadeiras sementes das nossas palavras actuais, nas várias línguas latinas.

Por exemplo, o autor aconselha a que se diga "persica" e não "pessica". Esta última palavra é a origem do nosso "pêssego". Também "noscum" ("connosco") era a forma errada de "nobiscum" (nós-com, ou seja, "com nós"). O certo é que "noscum" deu o nosso "nosco" − a palavra queria dizer "com nós", mas como o "com" estava já muito diluído, os falantes de português adicionaram um "com" no início: "connosco". Se formos ao latim, "connosco" significa "com nós com". (A verdade é que os falantes, quando aprendem a língua, não aprendem a história de cada palavra − usam-nas e pronto. Assim, o que se desvanece num ponto é acrescentado noutro.)

As listas de erros habituais de todas as épocas são muito interessantes para os linguistas futuros pois um erro, para estar na lista, deverá ser já tão habitual que dificilmente uma lista o irá corrigir; desta forma, são prenúncios de formas que se tornarão, facilmente, parte da norma escrita décadas ou séculos depois.

O Império Romano acabou, é verdade. A sua língua, que já fora a língua dos agricultores do Lácio, continuou nos lábios dos falantes e, longe de morrer, fez o que fazem todas as línguas vivas: mudou ao longo dos séculos, até chegar às nossas bocas. Pelo caminho, várias formas que a língua foi assumindo ganharam novos nomes e foram alçadas à categoria de línguas com gramática e com prestígio. Entre elas, o português...

Baseado num capítulo do livro História do Português desde o Big Bang.

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é Assim ou Assado: 100 perguntas sobre a língua portuguesa.