Imagine o leitor que se senta à mesa e, ao lado, um simpático pai, que parece razoável e inteligente, começa a perorar sobre as vacinas e a declarar aos sete ventos que ninguém o obriga a vacinar os filhos. O que fazer? O que fazer, já agora, numa altura em que há doenças que reaparecem precisamente por causa destas atitudes?

Solução n.º 1 — Gritaria da grossa

Às vezes, caímos na tentação do grito. Talvez até nos levantemos da cadeira e comecemos a discursar: mas que mundo é este em que uns quantos iluminados acham que são melhores do que os outros e recusam as vacinas às suas próprias crianças?

Dizer que as vacinas são prejudiciais à sociedade é quase tão mau — diríamos nós, numa vertigem retórica — como afirmar que a Terra é plana. As vacinas ajudam a diminuir a mortalidade infantil — o facto de as doenças terem diminuído na sequência das campanhas de vacinação é tão óbvio como essa Terra redonda debaixo dos narizes dos astronautas. E, no entanto — e aqui apontaríamos, em fúria, o dedo ao tal pai — continuamos a convencer-nos dos maiores disparates, alimentados pela nossa infinita capacidade de nos enganarmos a nós próprios.

O que aconteceria? Será que aquele pai cairia em si e sairia dali a correr, criança debaixo do braço, para bater à porta do Centro de Saúde mais próximo a pedir que lhe piquem o infante depressa?

Não: provavelmente, desataria a discursar tão inflamadamente quanto nós ou ficaria ainda mais convencido da justeza das suas ideias. Abraçaria com mais amor o filho, com medo do mundo que lhe quer picar os braços.

Solução n.º 2 — Argumentar com respeito

Quase nunca vale a pena. Dizem até por aí que, nestes casos, a exposição aos factos acaba por exacerbar a recusa desses mesmos factos, que serão considerados invenções «do outro lado», dos «maus» (estamos no mundo das histórias de encantar).

Mas antes de desesperar, pensemos. A verdade é que este mundo tem algumas coisas boas. Uma delas é esta história de como conseguimos erradicar algumas doenças através dum esforço colectivo que pareceria praticamente impossível não fosse dar-se o caso de ter mesmo acontecido. A população — uma grande maioria — aceita esta intromissão na nossa esfera privada, esta pequena dor individual, para o bem comum. As bolsas de resistência irritam, principalmente porque quem resiste fá-lo, muitas vezes, a partir duma posição de arrogância, mas estamos a falar de minorias. Seria muito bom que não existissem (o sarampo talvez não tivesse voltado a Portugal), mas podemos apreciar o que conseguimos e ser um pouco mais realistas, não desesperando pela perfeição quando já temos algo muito bom.

Mais calmos, sabendo que não é possível convencer toda a gente, podemos até afirmar que aqueles que recusam as vacinas merecem o nosso respeito, pois ninguém está livre de se enganar redondamente num assunto importante — e por isso julgo que vale a pena argumentar, porque a discussão séria é sinal de respeito por quem discordamos. Vale a pena apontar para os números, para a diminuição de algumas doenças, para a queda estrondosa da mortalidade infantil, para o facto de estarmos perto de eliminar a pólio, por exemplo, graças às vacinas.

(Algumas dessas pessoas, se me estiverem a ler, estarão agora a abanar a cabeça, convencidos de que eu estou iludido, a inventar, ou mesmo a argumentar por interesse pessoal — e, sim, tenho um interesse pessoal em que todos nos vacinemos: tenho dois filhos e preferia que vivessem num mundo com menos doenças. Sou um doido.)

Solução n.º 3 — Contar a história das crianças que não morreram

Posso estar enganado, mas parece-me que um dos factores que levam a que tantas pessoas caiam nesta esparrela é que basta um caso de uma criança com uma reacção alérgica a uma vacina ou umas histórias mal contadas duma qualquer ligação (falsa) entre as vacinas e o autismo para termos uma história pessoal, comovedora, interessante...

São histórias sempre mais interessantes do que a outra história: a história das crianças que não morreram, que foram salvas pelas vacinas. Isto porque ninguém sabe quem são essas crianças: podemos ser todos nós, tanto quanto sabemos. Não temos os rostos particulares, não temos reportagens... As mortes que não ocorreram não emocionam, não comovem, não nos deixam com a saborosa fúria contra o mundo que alimenta tanto do que fazemos. Imaginem como seria viver num país onde o governo recusa vacinar as crianças contra todas as evidências — ah, as vacinas seriam então objecto duma história interessante e muitos não desdenhariam lutar por elas.

Mas, não, nos nossos aborrecidos países onde todos se vacinam a não ser que não queiram, a história interessante é a história das excepções: de quem não vacina ou daqueles poucos casos em que as coisas correm mal.

As vacinas são responsáveis por milhões de histórias invisíveis de crianças que sobreviveram. Estas histórias são banais, estão escondidas nos números, não comovem ninguém.

Querem uma boa história bem real? Proponho um livro: Better, de Atul Gawande. O autor conta histórias de médicos e cirurgiões, acabando por nos dizer muito a todos sobre como melhorar no meio dum mundo imperfeito, onde as imperfeições começam em nós próprios (um exemplo: a dificuldade em levar os médicos a lavar as mãos como deve ser no meio do caos dos hospitais).

Um dos episódios que mais me comoveram foi o relato de como um dos responsáveis por uma equipa de vacinação durante um surto de pólio na Índia evita um confronto com uma mãe que recusou a vacina para a filha — esse homem sabia que o confronto só iria levar a que mais pais recusassem a vacina, pois a luta contra as narrativas anti-vacinas já era suficientemente difícil sem ter médicos a ralhar com pais convencidos que estavam a fazer o melhor para os filhos. O homem sabia também que aquela mãe, por amor à filha, estava a expô-la a uma terrível doença. Aquele homem respeitava aquela mãe, pois então, mas tinha de aprender a lidar com tudo aquilo, fazer o melhor possível, continuando a vacinar as crianças num processo moroso, difícil, pesado — um verdadeiro herói duma história real, uma história de gente que salva vidas com pequenas picadelas nos braços das crianças.

Façamos parte dessa boa história.

Marco Neves | Tradutor e professor. Autor do livro A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa. Escreve no blogue Certas Palavras.

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