É bem provável que o seu interlocutor de ocasião olhe para si com ar de quem não está a perceber a pergunta — não porque a pergunta não seja fácil de entender, mas porque a resposta é tão óbvia! O Camilo! O Eça! O Garrett! O Herculano! E tantos outros injustamente esquecidos! (Nisto da literatura, já sabemos, os injustamente esquecidos são um grupo de gente em perpétua expansão.)

Depois, claro, há-de surgir na conversa um ou dois nomes daqueles que deveriam ser justamente esquecidos e que andam por aí nas montras das livrarias — há tantos, não é? Com a conversa já animada, alguém há-de dizer que hoje todos escrevem — o que significa (na lógica arrevesada destas conversas) que hoje ninguém escreve nada de jeito.

A conversa entra assim nesse território pouco amigo da lógica, mas irresistível como poucos: comparamos o pior do nosso tempo com o melhor doutro século e ficamos com aquela sensação agradável de termos encontrado uma grande verdade: a nossa literatura já não tem escritores como antigamente. Nem vale a pena ler o que agora se publica. (E, no entanto, lemos — somos como aqueles dois amigos que corriam pela cidade fora a dizer que não valia a pena correr por nada, não é?)

Sei bem que as conversas de verão não são para analisar a fundo, mas esta lógica merece algumas bengaladas daquele canto da nossa mente que é um pouco mais exigente. Reparemos: quando dizemos que hoje não se publica nada de bom e que o século XIX era incomparavelmente melhor, estamos, no fundo, a comparar o que está nas livrarias por estes dias — ou, enfim, por estes anos — com as melhores obras dos melhores escritores de um século que, entretanto, já foi peneirado por todas as décadas que passaram... Seria como comparar o que estava na berra em 1818 com os melhores escritores de todo o século XXI (que ainda não sabemos quem são). Todos nós sabemos isto em teoria, mas caímos que nem patinhos tantas e tantas vezes.

Os bons escritores só se revelam muitos anos depois. Podemos ter algumas ideias, podemos até acertar num ou noutro nome — mas não é possível saber quem sobreviverá nas estantes do futuro. Os génios do século XXI hão-de aparecer: ou já estão aí, a escrever, ou ainda nem nasceram — ou, imagino até, estarão agora na escola, a falar como um jovem típico de hoje em dia, horrorizando aqueles que andam por aí convencidos de que os jovens da época de Camilo falavam todos como Camilo escrevia...

Façamos agora uma experiência mental. Transportemo-nos até ao início do século XXIII. Ali por volta de 2218 os portugueses de então estarão tão longe do nosso século como nós estamos longe do século XIX. O que se dirá então dos escritores de agora? Haverá alguns nomes incontornáveis nas estantes, clássicos de sempre, livros que todos conhecem e poucos lêem — e, pelos cafés da estação espacial onde os portugueses se refugiaram, haverá gente a lamentar-se que não haja bons escritores nessa segunda década do século XXIII. Ah, o século XXI... Esse é que foi o grande século da literatura portuguesa!

Isto não vale só para os escritores. Garanto — se for mentira, venham ter comigo nessa altura — que lá pelos finais deste século alguns dos políticos de hoje serão considerados grandes nomes da História. Garanto também que, por esses dias, muitos andarão pelos jornais da época a lamentar a falta de grandes nomes na política.

O passado engana-nos tanto: como o tempo vai eliminando da memória das gentes o que não prestava, ficamos com a sensação de que tudo era bom. À nossa volta, vemos maus escritores, políticos medíocres, artistas desafinados... Não encontramos os génios — e esquecemo-nos que os seus contemporâneos também não faziam ideia de que Eça de Queirós seria o Eça ou Almeida Garrett o Garrett... E assim caímos no velho engano de comparar a confusa e barulhenta floresta de hoje em dia com a dúzia de árvores que sobreviveram durante duzentos anos.

Mas esta conversa toda serve para quê? Ora, é uma ideia para deixar as palavras rolarem numa bela noite de verão. E, pronto, também serve para propor que se leiam os velhos clássicos já peneirados. Parece incoerente com tudo o que disse? Parece, mas não é. Sim, também eu gosto de me deliciar com os bons escritores de antigamente: o tempo é mesmo uma bela peneira. Só não julguemos os nossos dias muito diferentes desse passado. A peneira continuará a agitar-se e lá surgirão uma ou duas pepitas para fazer as delícias dos leitores portugueses do século XXIII.