1. Este Carnaval carioca foi a contra-eleição de Bolsonaro, o avesso onde a luta se encontra, nas ruas como no sambódromo. Mas o que desfilou com a Mangueira na noite de segunda para terça foram 500 anos de contra-história. Uma contra-história que se estende a Portugal, avesso dos manuais. Então, se a Mangueira desfilou por um Brasil índio, negro, pobre, de “mulheres, tamoios, mulatos”, que o ex-colonizador encare também o que ficou “atrás do herói emoldurado”, como diz o samba-enredo. Portuguesa, nascida na capital de onde partiram as naus, entrei no sambódromo para cantar em coro esse samba, com tudo o que nele é também meu. Éramos 3500 na pista, milhares nas bancadas, milhões mais além, e cantámos juntos por 500 anos. Há tanto tempo que a gente pergunta quando o morro vai descer. Pois nessa noite o morro desceu para a História.

2. Carnaval é libertação em conjunto. O que significa entrega, durante e antes, muito, muito antes. Ao longo de meses, incontáveis milhares de pessoas trabalharam para as noites do Sambódromo, neste caso para que o desfile da Mangueira recontasse a História, como o mundo viu em directo (e que nunca pode ser visto nesse instante por quem está na pista, entregue ao conjunto, um pontinho entre milhares).
Isso quer dizer que, entre o Carnaval de 2018 e o de 2019, enquanto o Brasil avançava na campanha eleitoral mais trágica, culminando com a posse do eleito mais infame, multidões de chinelo, em grande maioria negros, mulatos, pobres, desenhavam, cortavam, costuravam, martelavam, pregavam, pintavam, compunham os carros e as fantasias de “Histórias Para Ninar Gente Grande”, o samba-enredo que Leandro Vieira, carnavalesco da Mangueira, concebeu, depois de muito estudo, consulta, colaboração de peritos em vários tempos e lugares.

Ou seja, neste insano ano em que chegaram ao poder torturadores, admiradores da ditadura, perseguidores de mulheres, LGBT, negros, índios; o ano em que Marielle Franco foi assassinada, e aliados de Bolsonaro rasgaram a placa com o nome dela, e depois foram expostos por ligações à milícia, a mesma milícia que Marielle combateu, suspeita de estar por trás da sua execução, o carnavalesco da Mangueira mergulhou no longo lastro de opressão no Brasil, e devolveu-o ao mundo, homenageando quem resistiu e não está no retrato. Tudo com a contra-alegria que será uma verdadeira vocação deste país forjado na violência. Há 519 anos que alguns abusam de todos os outros no Brasil, mas o povo nunca capitulou à tristeza fundadora do estado. Uma contra-alegria indomável.
Fora do Brasil, mas também dentro, não é incomum certo menosprezo displicente pelo povo do Carnaval, como pobre alienado. Este Carnaval de 2019 é o corolário da prova em contrário, se preciso fosse: camadas e camadas de trabalho conjunto, de entrega, de foco. Quinhentos anos de suor que são uma inspiração global.

Há quase cem anos, Oswald de Andrade, um dos visionários que intuiu o coração nuclear do Brasil, escreveu que a alegria é a prova dos nove. Como Oswald teria festejado o desfile da Mangueira, vendo este país suado, moreno, brilhante virar a noite e a História, desfazer-se do seu ranço colonial, escravocrata. Um desfile tão poderoso que levanta os mortos, baixa os santos, é o milagre humano. “Quem é ateu e viu milagres como eu / sabe que os deuses sem Deus / não cessam de brotar”, escreveu Caetano. Ateia que sou, esse é o Brasil que vejo vir, como o índio que virá. E veio, de segunda para terça, samba no pé, sempre alado, pela avenida.

3. Como eu era um dos 3500 pontinhos das 24 alas da Mangueira, fiz depois o que quem não viu pode fazer agora, ver a integral do desfile na Net. Começa com uma cena em que os heróis no retrato, tipo Pedro Álvares Cabral, Pedro I do Brasil, a Princesa Isabel (que assinou a Abolição da Escravatura em 1888) ou o jesuíta Anchieta chegam emoldurados num carro, cercados por índios e negros. E, quando saem para os dominar, dão-lhes pela cintura, são gente pequena. “Não veio do céu, nem das mãos de Isabel, a liberdade”, diz o samba-enredo. Índios e negros tomam o lugar nos retratos, e a menina negra que gravou uma versão deste samba, Cacá Nascimento, aparece com um livro verde e rosa. Quando o desdobra, lemos a palavra PRESENTE. Não é preciso mais nada. O nome de Marielle aparece na nossa cabeça. É com ela que o quadro de 1500 fecha, abrindo alas para a história pré-1500, essa parte que nos manuais mal existe. Porque, do ponto de vista europeu, português, também adoptado por um Brasil esforçadamente embranquecido, a história começa sempre em 1500. E o que a contra-história da Mangueira mostra é que teve “mais invasão do que descobrimento”, por tudo o que já lá estava antes.

Não se abespinhem as lusitanas lapelas, trata-se de rodar o prisma, cair a ficha de como todos eles, índios, negros, mulheres tomadas à força, eram humanos, sim, cada um único, sagrado, antiquíssimo. E foram mortos em série, violados em série, escravizados em série. E continua a não haver sinais disso nos manuais, nas ruas, no património da antiga capital imperial, onde o Adamastor perde para um hotel, “indiozinhos” são esculpidos sob a protecção benévola do Padre António Vieira com a benção do poder público, e a nação debate um futuro Museu das Descobertas: tudo isso hoje, agora. Vejam o desfile da Mangueira, ouçam a letra, pensem!

Esta história pré-1500 abre com uma ala indígena dourada, depois outra com cerâmica do Tapajós, do Marajó, antigas de milhares de anos, vestígios de como no território que se tornou Brasil havia um conjunto de civilizações complexas, pela arte, pelo pensamento, pela cosmogonia. Seguem-se alas de vários povos, resistentes como Cunhambebe, líder da nação tupinambá, as cores da arara que Leandro Vieira reproduziu sem gastar penas, as caveirinhas do extermínio ameríndio por epidemia, abuso ou execução. Incluindo a representação dos Bandeirantes como assassinos de indígenas, quando na história mais institucional do Brasil, sobretudo a de São Paulo, bandeirante é herói, expansor do território, com nome em lugares públicos. E o carro que homenageia os massacrados vem empurrado apenas por mulheres, inédito.

Depois os negros quilombolas, que são os rebeldes, fugidos das senzalas para construírem zonas libertadas. O mais célebre é Zumbi dos Palmares, mas quem está na letra deste samba-enredo é a sua companheira, guerreira, Dandara, que se atirou num abismo para não ser escravizada de novo. E nos carros alegóricos, ao longo de todo o desfile, vêm lendas vivas, pela música ou pela história, como a cantora Leci Brandão, que também está no samba-enredo (“um pais de Lecis e Jamelões), e encabeçava o carro da minha ala, a do Levante dos Malês.

O Levante, ou Revolta, dos Malês, foi uma das maiores rebeliões de escravizados da história, em 1835, na Bahia. Os malês eram os negros muçulmanos (em língua iorubá “imalê” significa muçulmano). Por isso, quando nos concentrámos para desfilar nesta ala, éramos centenas com uma espécie de totem malê na cabeça. Só as peripécias em torno da fantasia dariam uma crónica, como transportá-la sem dano, como vestir sem engano cada componente, como garantir que a meio da avenida não cai a cabeça, a asa gigante nas costas, ou um sapato, sendo que por vezes o sapato fica pequeno ou grande demais. É que, se algo acontecer, nem pensar em parar, baixar, apanhar algo do chão, isso não existe. Os júris estão lá para avaliar a evolução, o ritmo, e qualquer paragem fora do baralho pode causar um acidente, perder décimas que podem custar a vitória.

Ali estávamos, longa ia a madrugada, à espera de entrar no sambódromo, os mais perdidos ainda a trocar partes da fantasia, esta para a frente, aquela para trás, troca a caneleira, roda o colar, quando Leci Brandão, roupa branca em pele negra, chegou para subir a escadaria do carro até ao topo, onde se sentou. E ao longo do desfile fomos os seus guardiões, lança na mão, asa nas costas, atrás do carro, em volta e à frente, cada um revoluteando na sua posição, mais ou menos fixo em relação aos restantes.
Antes de nós vinham as baianas, rodando as saias invulgarmente negras, depois de nós vinha o carro do Dragão do Mar, que também está na letra do samba-enredo (“a liberdade / é um dragão no mar / de Aracati”), alusão ao jangadeiro Francisco José do Nascimento, que no século XIX liderou uma revolta no Ceará, onde a escravatura foi abolida antes da Abolição.

Depois ainda, o brutal carro com a faixa DITADURA ASSASSINA, onde se destacava em pé, toda de preto, cabelos brancos, Hildegard Angel, a irmã de Stuart Angel Jones, guerrilheiro contra a ditadura, preso, torturado, dado como desaparecido político. Para a dimensão do que esta imagem viva representa, como resistência, em directo para o mundo inteiro, é preciso ter presente que Bolsonaro é um fã da ditadura, que homenageou torturadores e o regime militar em plena assembleia.
Finalmente, pé no chão, a ala das comunidades, ondulando bandeiras verde-e-rosa com várias figuras populares, com destaque para Marielle Franco. E é a mulher que ela amava, com quem vivia, com quem tinha casamento marcado, Monica Benício, que vem à frente dessa multidão verde-e-rosa, camiseta LUTE COMO MARIELLE. Presente como desde o início do desfile.

Tudo é rematado por uma última bandeira que, ao contrário das outras, não vem na vertical, ondulando, mas sim em braços, voltada para o céu: uma bandeira do Brasil verde-e-rosa, que ao centro tem escrito: ÍNDIOS, NEGROS E POBRES.

4. Leandro Vieira sabia bem o que estava a fazer com este samba-enredo. E quando falou, depois do desfile, e do comportamento obsceno de Bolsonaro, deixou-o claro: “É um recado político para o país todo, que tem que entender que isso aqui é importante. É um recado político também para o presidente mostrar que o carnaval é isso aqui. O carnaval é a festa do povo. O carnaval é cultura popular. O carnaval não é o que ele acha que é. O carnaval é isso. E ele deveria mostrar para o mundo o carnaval da Mangueira. O carnaval da arte, o carnaval da luta, o carnaval do povo, o carnaval da cultura popular.”

Que fez Bozo em vez disso? Postou no Twitter o vídeo de uma cena rara algures em São Paulo, uma cena que a esmagadora maioria das pessoas no Carnaval de rua nunca avistou nem avistará: um homem tocando no próprio ânus, depois baixando a cabeça para outro urinar nela. Sim, o presidente supostamente ultraconservador do Brasil fez isto para supostamente alertar as pessoas contra a imoralidade do Carnaval. Foi isso que ele mostrou do Carnaval ao mundo. E novo post para perguntar: “O que é golden shower?”
O grito deste Carnaval de rua foi: “Ei Bolsonaro, vai tomar no cu!” Mas aí estou com uma amiga mineira, acho que ele não merece. Porque quem diz que isso é mau são os do inferno dele. Vai que ele gosta, seria um favor que lhe fazemos. Se reduziu o Carnaval a um par de nádegas e golden shower, depois de tanta obsessão contra gays, temos matéria para pensar.

E que aproveitou o infame para fazer, na própria segunda-feira do desfile da Mangueira? Pôs o seu ministro a anunciar que as terras indígenas estão abertas à mineração.
Mas infâmia nenhuma tira o que a Mangueira fez, unindo um outro país. Não por acaso tanta gente fala em lavagem da alma. Melhor que banho de ervas, a tomada da História. Quem luta nunca perde. É para festejar, e ficar mais forte.

5. O céu abriu literalmente, mal a vitória da Mangueira foi anunciada. Chuva grossa, que não impediu a corrida para a quadra da Escola de Samba, sem luz desde a contagem dos votos. É assim no morro, chove e desliza, chove e perde tudo, ainda nem chove e já não tem luz. Mas o morro cantou, sambou, veio a Taça, voltou a luz.
E amanhã lá estaremos, de volta ao sambódromo, no desfile das campeãs. A Mangueira será a última, espera-se que o povo invada a avenida, agora sem o stress da pontuação. Salve deuses de asa no pé, poder cantar com vocês esses 500 anos.

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