Basta Pum Basta.
Vou aqui escrever um manifesto contra o perfecionismo e perdi uns bons quinze minutos a pensar na forma perfeita de o iniciar. Acabei por decidir copiar o Almada, e estou satisfeito com a minha decisão, podendo assim começar a escrevê-lo a partir da segunda linha – sempre a mais fácil.
Vou disparar contra este flagelo da humanidade que é a glorificação do perfecionismo. Vou falar de coisas que não domino inteiramente, citar estudos que posso não ter compreendido, e provavelmente vou falhar no meu grande objetivo de hoje que é convencer-te, a ti, leitor ou leitora, a abandonar qualquer ideia de que o perfecionismo é uma qualidade; que deve ser admirado ou invejado nos outros; que “em contexto laboral” até “pode ser positivo”.
O perfecionismo é uma merda. Desculpa mãe, mas desta vez tem de ser assim, para perceberem que estou a falar a sério. O perfecionismo é uma merda. O que não faz dos perfecionistas uma merda, atenção: saber separar o doente da doença é fundamental, sempre.
Eu não sou médico, nem nada que se pareça. E quando digo “doença”, estou a expressar-me de forma imperfeita, mas isso vocês já sabiam.
O perfecionista persegue um ideal, a perfeição. Umas vezes a “sua” perfeição, que já é impossível quanto baste, outras a do patrão ou a da sociedade, que são tantas diferentes que nem existem. O perfecionista persegue esse ideal como se conseguisse efetivamente atingi-lo, e é porventura essa poesia de tentar o impossível que faz granjear ao perfecionismo tamanha consideração social: é sempre inspiradora a luta contra o Golias.
O problema da perfeição é a ilusão de que é atingível, que está sempre à distância de “só mais um bocadinho”, de mais um detalhe, de mais umas horas, de mais um esforço. E como tal o produto de trabalho do perfecionista está, para ele, sempre imperfeito ou inacabado.
O perfecionista impôs-se uma bitola inatingível e ao fazê-lo condenou-se a uma vida permanentemente atormentada pelo falhanço. O perfecionismo não é um mero comportamento: é uma cruz que carregamos às costas e que nos relembra a cada momento da nossa incapacidade para atingir um objetivo.
O perfecionismo é espelho do medo. Do medo de falhar, claro. Do medo do julgamento dos outros, do medo da vergonha, de sermos vistos imperfeitos, credo, numa sociedade onde as imperfeições se varrem para debaixo de um tapete, onde a ilusão do mérito, a aparência do sucesso e a ausência de complicações são aspetos mais valorizados do que o autoconhecimento e a vulnerabilidade.
O perfecionismo é um eterno adiamento, a procrastinação tornada método, que se alivia apenas com a imposição de um prazo e que se torna angústia, terror, na sua ausência, sinal claro de um trabalho para sempre inacabável.
O perfecionismo é o cilício da alma. É um castigo autoimposto, travestido de traço de personalidade, para nos impedirmos de fazer as pazes com o tanto de nós que fica aquém dos nossos sonhos.
O perfecionismo pode levar ao sucesso, porque o trabalho do perfecionista é geralmente de elevada qualidade. Pudera, caro que é, pago que foi com sacrifício, ansiedade, desespero, horas a mais tiradas ao sono, e a sensação latente de que mesmo assim, não está perfeito, podia estar melhor.
Mesmo aquela blague famosa, a de que perguntados pelo nosso pior defeito, respondemos que “somos perfecionistas”, leva ínsita a ideia de que o perfecionismo é o defeito bom, aquele que nos valoriza, porque nos denota a ambição, a busca pela melhoria, a determinação na procura pelo impossível. Pobres de nós, que à força de tanto querermos que outros nos comprem, acabamos oferecendo mais do que somos, pagando essa dívida com os juros do corpo.
Não preciso que acreditem em mim, mas preciso que percebam que o perfecionismo é uma merda. Sou daqueles que gostam de trazer a autoridade dos outros para estas conversas, porque sei bem que a minha não chega.
Este estudo científico concluiu que o número de pessoas perfecionistas vem aumentando, tendo duplicado durante o período em estudo (1989-2016). Este outro descobriu, ao analisar 284 outros estudos sobre o assunto, que elevados níveis de perfecionismo se correlacionam claramente com ansiedade, depressão, transtornos alimentares, automutilação e transtorno obsessivo-compulsivo. Este último indica que os perfecionistas se tornam, com a idade, mais amargurados, cínicos e irritáveis, consequência da sensação constante de insuficiência e falhanço.
Pronto: isto já não é só uma embirração minha. O perfecionismo é um problema sério, identificado por especialistas, associado a doenças mentais, em franco crescimento, e que ainda goza, inexplicavelmente, de boa reputação, justificável apenas numa sociedade completamente alucinada pela vertigem do sucesso, do dinheiro e da perfeição.
Daí a importância de eu vos dizer isto e de vocês acreditarem: o perfecionismo é uma merda. Para o perfecionista, sobretudo, mas também para quem o rodeia e o vê enrodilhar-se nas armadilhas da sua própria condição.
A alternativa ao perfecionismo não é fazer as coisas mal, não querer saber, não ter ambição. Se fosse, estaria, com este texto, a deitar por terra a minha carreira profissional, aqui me confessando um bandalho, que faz as coisas com os pés. Não tenho a ambição de ficar sem trabalho, assim como não vivo amarrado à ilusão de que o meu trabalho só tem valor se for perfeito.
O perfecionismo é uma merda. Eu proponho que se celebre antes o imperfecionismo, palavra que não sei se existe, mas que me proponho a inventar aqui.
O imperfecionismo é a rejeição da perfeição como bitola, e é também o reconhecimento de que imperfeito não é sinónimo de mau. É só sinónimo de humano. A imperfeição tem costas largas, inclui tudo, do péssimo ao excelente.
99% no teste? Imperfeito. Democracia? Imperfeita. O 25 de Abril? Imperfeito. Descolonização? Imperfeita. E são tudo coisas excelentes que têm de desesperar qualquer perfecionista.
O imperfecionismo é abraçar o brio, que nos impele a fazer as coisas bem feitas, com qualidade, sem vivermos obcecados com a sua imperfeição. É esforçarmo-nos para que o nosso trabalho seja algo que nos orgulhe, porque é feito com esforço, dedicação, responsabilidade. É assegurarmo-nos de que aquilo que fazemos, ainda que imperfeito, cumpre na totalidade o objetivo a que se propõe, e que as imperfeições que certamente terá não põem em causa a sua função primordial.
Trabalhar honestamente, seriamente, e não atingir a perfeição não é falhanço, é progresso. É com a imperfeição, a nossa e a do nosso trabalho, a dos outros e a dos trabalhos deles, que se progride, que se cria, que se entrega, que se supera, que se aprende, que se faz, que se vence.
Onde a ânsia da perfeição paralisa, o pragmatismo da imperfeição permite continuar.
O perfecionista sofre, caminha em linha reta para a ansiedade e a depressão, e há cada vez mais perfecionistas. Se isto não vos assusta, devia.
Não sei se tu que me lês precisas de ler isto. Se andas pelos corredores da empresa às quatro da manhã a tentar fechar um trabalho que o teu chefe mal vai ler. Se estás na escola ou na faculdade, obcecado com as tuas notas e as dos teus colegas, ocupando cada minuto com atividades extracurriculares que te permitam apresentar no mercado o percurso perfeito e imaculado. Se escondes nas gavetas os teus poemas, as tuas pinturas, se apagas os vídeos que gravaste ou os áudios das músicas que criaste, porque não estão perfeitas, porque podiam estar melhores, porque são um convite ao julgamento dos outros.
Lembra-te: o perfecionismo é uma merda. Faz as coisas bem feitas e vai ao resto da tua vida.
O perfecionismo é comiseração. O imperfecionismo é compaixão, por nós e pelos outros. Eu prefiro.
“Adoramos a perfeição, porque a não podemos ter; repugná-la-íamos se a tivéssemos. O perfeito é o desumano porque o humano é imperfeito. …
Para poder obter a perfeição fora precisa uma frieza de fora do homem e não haveria então coração de homem com que amar a própria perfeição.
Pasmamos, adorando, da tensão para o perfeito dos grandes artistas. Amamos a sua aproximação do perfeito, porém o amamos porque é só aproximação.”
Livro do Desassossego por Bernardo Soares.
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