Bem sabemos que as partes trágicas se vão acumulando, sejam as mortes, o desemprego, as birras do proto-fascista para se manter à tona, os comentários do José Miguel Júdice ou os tweets do Nuno Melo. Portanto, quando passar, porque passará, nunca será uma vitória, nunca será para festejos. Mas não invalida que se possa retirar daqui as partes boas, o que tem aparecido de realmente bonito.
Como o estado do meu cabelo, por exemplo, ou os lives do Bruno Nogueira em “Como É Que o Bicho Mexe”. As pessoas podem gostar do Bruno, ou não. As pessoas podem gostar dos convidados que lá aparecem, ou não. Podem querer ver, ou não. Negar que a companhia que isto faz a 70 mil pessoas todas as noites é realmente bonito e de um romantismo comunitário aconchegante já é só patético.
Num destes dias, num momento que eu diria que fica para a história da internet em Portugal, a Maria João Pires tocou para toda aquela gente, perante o ar embevecido do Nogueira. A rodos surgiram as manifestações de gratidão pelo que tinha acabado de acontecer, comentários emotivos nas várias redes sociais a extravasar aquele directo de Instagram.
E, incomparavelmente menos, as críticas: “Nunca ligam nada à arte e à cultura e, de repente, já todas adoram a Maria João Pires! Vão-se mas é f****!”. Deixei o impropério final para que se perceber melhor o tom de raiva. Bem sei que estes comentários foram pingos de amargura num lago de amor (é pá, esta frase ficou tão bimba que vou deixar ficar, está a valer tudo, já), mas deixaram-me a pensar.
É capaz que aquela frase tenha um fundo de verdade. A arte é muitas vezes mal tratada em Portugal, e a maior das pessoas que estão ali provavelmente, pelo menos até à data, não pagaria nem 5€ para ir ver a Maria João Pires, uma orquestra sinfónica ou um bailado. Mas é preciso ser um calhau para achar que não se podem emocionar na mesma agora que a viram tocar num momento tão inesperado.
Sim, sim, é possível que quase todas continuem a não ligar absolutamente nada a música clássica, a não ir a museus, a nem sequer saber quem é a Paula Rêgo, mas se durante aqueles minutos se sentiram aconchegados pela música de Debussy, então já valeu a pena. Se para além disso, tiver despertado o interesse de um monte daqueles espectadores de Instagram para outros tipos de arte aos quais antes não ligavam muito, é claramente uma pequena vitória no meio disto tudo.
E uma coisa é certa, há de ter ajudado muito mais do que um comentário a cuspir raiva que acaba com uma ordem para as pessoas se irem aquilo que referi ali em cima. E percebo que é uma coisa que esteja a fazer muita falta a quem está a fazer a quarentena sozinho. Mas não se justifica tanto ódio. Oiçam antes mais um pouco de Debussy.
Sugestões mais ou menos culturais que, no caso de não valerem a pena, vos permitem vir insultar-me e cobrar-me uma jola:
- The Pervert’s Guide to Ideology: Filme com o filósofo Slavoj Zizek.
- A Psicologia do Amor: Livro do incrível Irvin Yalom.
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