Está a irritar-me e não é sequer uma irritação cega, lamentavelmente. Todas as minhas melhores irritações são cegas; perco compostura e legitimidade na argumentação, mas os textos em que rosno e mordo desenfreado são muito mais fáceis de ler. Quem é que precisa de boa argumentação quando se pode ter boa imprecação? (na verdade, a resposta a esta pergunta é “todos nós”, só estava a usar de má argumentação para brincar com a boa).

Não é uma irritação cega, não. Talvez devesse ser, para equilibrar as facções na batalha – se é para bater no ceguinho, que seja com fúria invisual. Mas não, Bertolucci nem sequer é um cineasta que me mereça total desprezo artístico, apenas quase. Não consigo enfurecer-me de forma básica pelo homem que ajudou a escrever o magnífico “Aconteceu no Oeste”, nem enjeito na totalidade uma obra cinematográfica que inclui “O Conformista” e “A Tragédia de um Homem Ridículo”.

O resto da filmografia bertolucciana pouco me interessa, mas os exemplos que dei são bons o suficiente para nunca parecerem casos fortuitos, ou sortudos, dum realizador que não sabe o que anda a fazer. Bernardo Bertolucci é inexcusável artisticamente porque até sabe executar bem, embora poucas vezes. Irritam-me dois tipos de consagração indevida a realizadores. A primeira é da responsabilidade do público e da crítica, porque teimam em consagrar gente estéril de cinema e profícua no espalhafato (vou dar-vos a oportunidade de me odiarem, ao incluir nomes como Iñárritu e Ridley Scott nesta fornada). A segunda é da responsabilidade do próprio realizador, quando tem provas dadas das suas capacidades mas o grosso da obra fica muito aquém  - é o caso de Bertolucci, cuja plena visão o desabilita de ser aquele ceguinho em que todos andamos a bater. Tanto melhor, passamos a bater num bully.

Até esta nova polémica em torno do velho “Último Tango em Paris” me chega a irritar, logo pelo facto de insistirmos em chamá-la de polémica. Pode tratar-se do meu léxico viciado, mas sempre entendi “polémica” como um assunto controverso que acarreta grande discórdia; ora, eu ainda estou para vislumbrar concórdia que torne o tema verdadeiramente polémico, e não apenas liminarmente lamentável. Tenho lido vários artigos em que se tenta defender o ponto de vista da vítima, como se houvesse outro ponto de vista passível de defesa. Noutros, detalham-se todos os motivos pelos quais aquela quebra de confiança (e, já agora, de contrato) é um erro, como precisássemos de ajuda para associar exploração inescrupulosa a erro. A minha irritação é, no fundo, rezinguice pessimista – quem nesta altura do campeonato ainda precisa de perceber porque é que uma violação de confiança, (ainda para mais deste calibre e com este grau de exposição) é errada, nunca vai perceber.  Sou rezingão e pessimista ao ponto de nem considerar as  possibilidades pedagógicas do debate; abrir este assunto à discussão é pôr pilhas nos megafones da imbecilidade.

Irrita-me, finalmente, que se tente observar esta questão em torno dos desígnios insondáveis da Arte. Quando Bertolucci afirma a patacoada de querer ver a reacção de Maria Schneider enquanto mulher e não actriz, para além do abuso (porque Schneider estava à sua disposição apenas enquanto actriz), lança-se num presumido discurso sobre a Arte. Isto acrescenta-me irritação já que (caso tenham estado distraídos nos primeiros parágrafos) o “Último Tango em Paris” me parece uma obra menor que não se presta à elevação dessas questões. Até consigo defender que a Arte se pode construir a partir de intenções reprováveis, que pode ser abjecta e alimentar-se das nossas atitudes mais execráveis, isto porque a Arte não é necessariamente moral, nem boa por ser boa. A Arte pode irritar-nos, e não temos de lhe ficar reféns: podemos vaiar, derrubar, reprovar, sermos melhores do que ela, precaver que se repita.

“O Último Tango em Paris” é um filme desnecessário de 1972 que conseguiu meter o pé na porta de 2016. Talvez só com estes desenlaces recentes é que  tenha granjeado o choque, as atenções e a autenticidade mórbida que o aproximem da obra de Arte. 44 anos em penosa decantação para que possamos admitir não o filme, mas o moroso happening, como uma inequívoca obra de Arte – das que devemos vaiar, derrubar, reprovar, sermos melhores, precaver que se repitam.

SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO

A primeira sugestão de hoje pode servir como recomendação para excelentes prendas natalícias. O Merc’Art , no Mercado da Ribeira em Lisboa, é o sítio onde se podem comprar reproduções assinadas de ilustradores portugueses – tanto dos mais consagrados como dos que já logo aqui se começam a consagrar. Os preços são para todas as bolsas, excepto aquelas que gostam de pagar demasiado.

Ainda no Cais do Sodré, a taberna “O Povo” seria um sítio recomendável só pelas iguarias que serve, mas destaco-a por reservar muitas segundas-feiras para tornar-se palco de uma das melhores tertúlias de poesia em Lisboa.