Com toda a razão, as vacinas são consideradas um dos grandes avanços da medicina. Descobertas em 1796, popularizadas no século XIX e generalizadas durante o século XX, tanto na cobertura da população como nas doenças abrangidas, as vacinas erradicaram inúmeras doenças e têm protegido milhares de milhões de pessoas em todo o mundo.

Agora, no século XXI estão a ser postas em questão. Um fenómeno que só se explica porque, de entre as centenas, se não milhares, de vacinas desenvolvidas, ainda não se inclui uma contra a estupidez, a natureza humana contra a qual lutaram em vão os deuses do Olimpo.

Um artigo de Tim Marcin na revista digital “Vice”, relata que a ONG Wellcome Trust fez um inquérito a 140 mil pessoas, acima dos 15 anos, em 140 países, sobre a sua atitude em relação à vacinação. Os resultados são surpreendentes: Globalmente, 7% das pessoas considera que as vacinas não são seguras, 11% não concordam nem discordam e 3% dizem que 'não sabem'. Ou seja, estima-se que 21% não esteja certo quanto à segurança ou utilidade da vacinação.

O mais inusitado é que nos países desenvolvidos, onde a prática é antiga e generalizada, só 73% confia no procedimento. Na Europa do Sul, a percentagem de desconfiados é ainda maior já que apenas 61% da população considera o procedimento seguro, e na Europa do Leste este número ronda os 60%. A França, o país que começou primeiro a vacinar em massa, só tem 67% de crentes. Outra conclusão perplexante é que quanto menos desenvolvidos são os países, mais as pessoas têm fé nas vacinas.

Ou seja, onde a vacinação é corriqueira, desconfia-se; onde é de difícil acesso e não cobre todas as doenças, acredita-se. Dentro de cada país, vive-se uma situação similar; é nos centros urbanos, onde a saúde pública é melhor, que há mais “anti-vaxx”, o nome desta tribo preocupada com um excesso de tecnologia em questões de saúde.

Uma razão para esta aparente contradição é bastante lógica. Nos países, ou regiões, onde as doenças erradicadas pela vacinação desapareceram há muito tempo, já ninguém se lembra do horror que eram, e tende a menorizar o perigo. De facto, tendo a varíola sido oficialmente erradicada em 1979, já há muita gente que não se lembra dela. Convém, contudo, lembrar que no século XX morreram entre 300 e 400 milhões de infectados e em 1967 considerava-se haver ainda 15 milhões de doentes.

Mas certas doenças, como o sarampo, conseguem sobreviver algures, mesmo quando eliminadas nos humanos. Assim que a vacinação diminuiu sensivelmente, o sarampo reapareceu. Mais de mil casos nos Estados Unidos, só este ano.

Outras microbiológicas (para usar a designação oficial), como a tuberculose, que nunca foram erradicadas, mas ocorriam muito raramente, conhecem um ressurgimento preocupante. Aliás, no caso da tuberculose, novas extirpes resistentes aos antibióticos tornam o problema mais grave.

Outra razão para menorizar a importância das vacinas é a nova atitude muito urbana de almejar o que é rural, isto é, natural – sem sintéticos, sem químicos, sem aditivos ou conservantes. O crescimento exponencial da indústria de alimentos biológicos é prova desta postura. Há toda uma nova filosofia (ou velha filosofia pós-modernizada) contra a intervenção na natureza, seja ela paisagem ou corpo humano. As vacinas para doenças que ninguém viu são uma das vítimas desta moda. No caso mais extremo, há quem ache que são uma falsa solução para um problema inexistente, alimentada pela indústria farmacêutica.

Uma afirmação recorrente é de que as vacinas provocam autismo. Mas há outros perigos, específicos ou generalizados, que justificam não vacinar as crianças. De facto, há casos em que uma vacina provoca reacções negativas que podem, até, matar a pessoa. Contudo, estatisticamente, são casos raros. Não chegam a menos de 0,1 por mil. A probabilidade de ter problemas com uma vacina é infinitamente menor do que a de apanhar a doença. E o número de doenças consideradas perigosas – aquelas que estão na lista de declaração obrigatória da Direcção Geral de Saúde  – ultrapassa as quarenta. Algumas, como a Tularémia, podem ser de facto exoticamente raras, mas outras, como a Gonorreia, ocorrem constantemente.

Mas as vacinas não são obrigatórias. Partia-se do princípio que ninguém no seu juízo recusaria vacinar-se ou vacinar os filhos. Basicamente, só não se vacinariam as pessoas fora do sistema, por razões várias – ou por serem muito pobres e ignorantes, ou por viverem na marginalidade.

A questão coloca-se agora porque algumas doenças estão a voltar, exactamente na altura em que também aumentam as pessoas que não querem vacinar os filhos.

Não se trata de uma opção com consequências apenas para os não vacinados. Estando mais sujeitos às doenças, sujeitam os outros que convivem com eles ao mesmo risco. Ora, mesmo que se respeite a vontade duma família, por menos cientificamente fundamentada que seja, levanta-se a questão dos direitos individuais que colidem com os direitos dos outros. Essa animosidade “anti-vaxx” coloca em perigo o direito de viver num ambiente saudável. Uma coisa é uma pessoa querer correr riscos, outra é expor outrem às consequências da sua opinião. Mais ainda, se não há fundamentos científicos para pensar dessa maneira, apenas “impressões” baseadas na fé ou na esperança.

Às vezes espantamo-nos como certas civilizações antigas, que pareciam tão sólidas e prósperas, que decaíram e eventualmente desapareceram ou foram destruídas. Essa decadência geralmente ocorreu por razões que desafiam o bom senso. Um progresso inegável – como, digamos, o saneamento urbano – de repente é esquecido como se não se sentisse a sua falta. É o caso dos sistemas de distribuição de água e da rede de esgotos do Império Romano, que foram completamente obliterados nos próprios territórios onde existiam. Só no século XIX, isto é, uns mil e quinhentos anos depois, é que os países europeus se empenharam em criar redes semelhantes.

Será complexo explicar às gerações futuras porque é que o Homem chegou à lua em 1969 e depois esteve décadas sem lá voltar, ou não prosseguiu imediatamente para outros astros. Sabem-se as razões – geopolíticas, técnicas – mas mesmo assim parece surpreendente como foi abandonado um progresso tão ousado e carregado de esperança.

À distância, certos retrocessos parecem apenas resultado duma estupidez inexplicável. Como é que se vai contar às gerações futuras que esta civilização, depois de ter descoberto um processo de acabar com as doenças, resolveu deixá-las à solta?