“ignoraram”

“não responderam”

“não têm interesse”

“senti desprezo e desrespeito”

“sem teres um agente é impossível”

Escrevem-se livros, editam-se discos, inauguram-se exposições e o problema é quase sempre o mesmo: o acesso desigual aos meios de comunicação social. Fiz perguntas, li entrevistas e a conclusão é que a cultura não é de todos e para todos. É dos que fazem parte de um certo círculo de privilegiados que determina o que é cool, que também é válido para outras áreas e negócios.

Por princípio, devemos viver numa sociedade igualitária e equilibrada. Sabemos que assim não o é desde o princípio dos tempos e insurgirmo-nos pela luta de classes é um cliché tão velho quanto o da ideia de classes em si. Contudo, entre pessoas da mesma classe social, com o mesmo nível de rendimentos, grau educacional e (aparentemente) as mesmas oportunidades, há profundas desigualdades. Democratizou-se o acesso aos meios de produção ao mesmo tempo que cresceu o fosso entre quem cria e quem produz, apesar da promessa democrática da Internet. É que entre uns e outros existem uns guardiões da (suposta) verdade que mantêm as portas fechadas ao desconhecido.

Quem na família tem uma jovem promessa que nunca chegou a concretizar-se porque não conseguiu mostrar o seu trabalho a quem dele poderia gostar? Quantos temos amigos, aspirantes a artistas, que se perdem em empregos iguais a tantos outros porque lhes falta dinheiro para investir na sua vocação? E quantos temos conhecidos os quais, conseguindo desenvolver a sua vocação, não encontram portas que se abram porque lhes falta estar no lugar certo à hora exacta isto é, conhecer as pessoas certas?

A resposta é: todos. Porque todos conhecemos alguém que encaixa no perfil.

Pessoalmente conheço vários, e outros tantos, que me enviam pedidos de ajuda para tentarem chegar à rádio. São principalmente músicos mas são também encenadores que só precisam de visibilidade mediática para encher a sala, cantores com demos prontas para dar o salto, bailarinos cuja arte se perde entre tantos outros espectáculos aos quais a comunicação social dá mais atenção. Se é certo que nem todos os projectos artísticos reúnem os ingredientes para o sucesso, também é verdade que a comunicação social faz as suas escolhas editoriais mas é, sobretudo verdade, que esta escolha é em função da máxima de que o público só gosta do que já conhece. O que limita, bastante, o que esse mesmo público pode conhecer. Editores, agentes, críticos e outros que determinam o que pode, ou não, fazer parte da I liga dos artistas profissionais, jogam pelo seguro, em função da relação trabalho-rentabilidade. Escolher um artista, trabalhar a sua arte em função da sua criatividade e do que são factores de sucesso em cada uma das áreas artísticas, promovê-lo junto do sector e, principalmente, junto do público, exige tempo, investimento financeiro e dá muito trabalho. Como os senhorios que expulsam arrendatários em função da renda fácil e inflacionada do mercado do arrendamento local, também nesta área domina o que é mais simples, fácil e imediatamente rentável.

Associado à relação trabalho-rentabilidade há outro, difícil de explicar, chamado preconceito e sobre o qual já escrevi diversas vezes. É moderno chamar-lhe guilty pleasures musicais. Na verdade, achamos que os cantores que venceram programas de talentos são menores até o marketing e a comunicação os transformarem na the next big thing com músicas que cantamos sem vergonha. O mesmo se aplica a actores, apresentadores, escritores e tantas outras actividades criativas e artísticas que criticamos soltando uma certa presunção que resulta, invariavelmente, de ignorância. Podemos criticá-los?

Podemos, se também nos auto-criticarmos porque os agentes artísticos determinam que tipo de arte chega ao público, considerando as reacções desse público o que, por outras palavras, significa que podem determinar o que entendemos por cultura neste estado de superficialidade instantânea de uma cultura que é, principalmente produto, e que, por isso mesmo, replica aquele estado de dormência de que Adorno e Horkheimer falavam no século XX e que é, acima de tudo, mediocridade.

Os filósofos da cultura sempre criticaram a produção instantânea e uma certa plastificação cultural. Não se trata de defender ou criticar um determinado género de produção artística e cultural para valorizar outra mas, antes, de afirmar que, se existem exemplos de artistas portugueses com agendas cheias e sucesso internacional, quase desconhecidos do público português, algo vai mal no reino dos gatekeepers da pop.

E se, um dia escrevi sobre Julio Iglesias abordando exactamente esta questão do preconceito musical, se já aqui apresentei o Diogo Piçarra, muito antes da sua explosão na rádio, se dou tempo de antena a quem dele não precisa, como Adele, muito por causa dessa ideia que existem e que nem sempre têm fundo de verdade, se dou atenção a novos artistas como o Martim Vicente (que deveriam mesmo ouvir), porque não despir-me das manias electro sofisticadas que preenchem o universo musical urbanista, falar-vos desse portento que é Celeste Rodrigues, irmã de Amália Rodrigues, e da sua celebração de 73 anos de carreira? Como outros artistas, Celeste Rodrigues foi enchendo casas de espectáculos por esse mundo fora sem a mesma repercussão em Portugal. A pergunta que se impõe é simples: porquê?

Esta semana reúne outros artistas e recria a ideia de uma sala de estar para estar entre amigos no Tivoli BBVA celebrando a sua carreira e os seus 95 anos de idade. Um espectáculo. Apenas isso.