Pensámos um bocado antes de colocar a classificação “poderosos”. Os defensores (e beneficiários) da nova política ultra-conservadora do Supremo Tribunal incluem tanto empresários muito ricos (ricos o suficiente para poderem influenciar decisões políticas), como líderes conservadores e religiosos. São poderosos sozinhos, ou porque se juntam em lobies bem financiados. E são, todos eles, muito persistentes. Levaram cinquenta anos a conseguir uma composição do Tribunal que garante a volta aos valores, materiais ou morais, em que eles acreditam.
Mas vamos por partes. Primeiro a Interrupção Voluntária da Gravidez, uma decisão que causou impacto imediato. A história, como toda a gente foi lembrada agora, começa em 1973, quando o Supremo da altura tomou a famosa decisão conhecida como Roe vs. Wade, tornando possível uma mulher abortar legalmente, por decisão sua. Ao contrário de outros países, como Portugal, os conservadores – “pro-life” - não se deram por vencidos e nunca perderam a esperança de reverter a decisão. Organizaram manifestações, cercaram as clínicas especializadas e chegaram a pôr bombas em algumas. Mas esta ofensiva pública serviu apenas para radicalizar ambos os pontos de vista e não impediu que os Estados mais progressistas mantivessem essas clínicas a funcionar. A única maneira realmente eficaz de voltar para antes de 1973 seria através da lei. Foi preciso Trump ser eleito para nomear não só uma maioria do Supremo Tribunal, mas também mais de trezentos juízes em vários níveis de círculos judiciais.
Esta decisão do Tribunal, que já se adivinhava pela publicação de um rascunho do texto, provocou a entrada imediata em vigor de leis impeditivas do aborto em treze Estados. Essas leis já estavam prontas para serem activadas no mesmo dia em que saísse a decisão federal – são as chamadas “trigger laws”. Variam de Estado para Estado, mas em alguns casos a interrupção da gravidez é ilegal mesmo que a vida da mãe esteja em perigo e não há excepções para incesto e violação. Do outro lado da barricada, Estados como a California, Hawaii, Illinois, Massachusetts, Nevada, New Jersey, New York e Michigan declararam que vão facilitar o procedimento a mulheres vindas de outros Estados.
Numa sondagem feita pela organização independente YouGov para a revista “The Economist”, “só 9% dos inquiridos disseram que “uma mulher nunca deve ter direito a abortar”. 49% acham que Roe vs. Wade não devia ser anulada. 68% opinam que a interrupção deve ser permitida em certos casos.
Contudo, a realidade é muito diferente do que a maioria dos “pro-life” conhecem. Mais de 51% das IVG são feitas quimicamente, sem necessidade de intervenção cirúrgica. Há um fármaco chamado misoprostol, recomendado pela Organização Mundial de Saúde, que se vende pelo correio sob a forma de pílulas. Esta situação torna os correios norte-americanos cúmplices incautos de um grande número de abortos; além de ilegal, seria impraticável fiscalizar e abrir a correspondência das pessoas.
Um outro aspecto interessante, que deixo para quem quiser estudar o histórico das posições pró e anti-aborto, é o livro de Daniel Williams, “Defenders of the Unborn”, que relata como estas posições mudaram ao longo do tempo, relacionando-as com a situação económica das mulheres. É que, de facto, são as mais pobres que são mais prejudicadas com as proibições, não só por terem menos informação como pelo custo de uma viagem entre Estados.
Finalmente, convém ter em conta uma particularidade da mentalidade norte-americana. Enquanto os “pro-life” consideram o aborto uma questão moral, os “pro-choice” colocam a questão em termos de direitos individuais. Para uns, a moral cristã deve seguida por todos; para os outros, cada pessoa tem liberdade de escolher a sua moral. Esta diferença torna a discussão impossível e radicaliza irremediavelmente as opiniões.
Agora, a questão não termina aqui. Dentro da mesma moral, o preservativo é tão condenável como um abortivo. Lembro-me dos tempos do antigamente, em Portugal, quando só algumas farmácias vendiam preservativos, com uma atitude de quase repugnância. E, já que estamos a falar de atitudes imorais, a união de pessoas do mesmo sexo também está em perigo. E não sou eu que o digo; Clarence Thomas, juiz do Supremo, escreveu um memorando em que afirma que o aborto não é uma “liberdade” protegida pela Constituição, assim como não são a contracepção, as relações entre pessoas do mesmo sexo e a igualdade no matrimónio. “Temos o dever de corrigir o erro desses precedentes”, conclui.
Agora, a questão do armamento. O direito de ter uma arma, ou de andar com ela (que são situações diferentes) vem da Guerra da Independência dos Estados Unidos, que combateu contra o exército regular inglês com “milícias”, isto é, grupos de cidadãos não graduados militarmente. A posse de uma arma, geralmente uma caçadeira ou uma pistola, sempre foi corrente. Na década de 1950, mais ou menos, um clube privado conhecido como NRA (National Rifle Association) começou uma campanha coordenada com os políticos e financiada pelos fabricantes, no sentido de expandir a venda de armas e, simultaneamente, os modelos mais vendidos. Tornou-se comum a posse de armas de guerra (como a famigerada espingarda-metralhadora AR-15), assim como, na maioria dos Estados, a possibilidade de qualquer pessoa, inclusive crianças, a poderem usar a tiracolo abertamente. Como resultado desta campanha bem sucedida, hoje há 120,5 armas por cem habitantes. Todos os dias 53 pessoas são mortas a tiro. Os assassinatos em massa (“mass kilings”) ocorrem mensalmente, por uma razão ou por outra, isto é, por motivos políticos/ideológicos/religiosos, ou simplesmente porque uma pessoa se passou dos carretos.
Todas as tentativas governamentais para moderar o lóbi das armas têm falhado. Obama, lembro-me, queria tornar obrigatória a verificação de idoneidade dos compradores (“background checks”), e não conseguiu. Nem conseguiu sequer que fosse aprovado um dispositivo que identificava o utilizador da arma, tornando-a inoperante se não fosse usada pelo dono.
As leis referentes a armas também são estaduais e variam muito. No Estado de Nova Iorque, por exemplo, é muito difícil comprar uma arma; não só há poucas lojas, altamente reguladas, como é preciso apresentar uma justificação para a posse – mais ou menos como acontece em Portugal e na maioria dos países civilizados. Também não há nenhuma razão para um cidadão ter uma arma de guerra em tempo de paz. Mas, como as pessoas viajam livremente entre os Estados, nada impede um morador de Nova Iorque de ir às compras na Flórida, onde não lhe perguntam nem porquê nem para quê.
A posse de armas tinha sido regulada (ou desregulada) pela última vez em 2008, quando o Supremo Tribunal reiterou, em District of Columbia vs. Heller, que um cidadão tem o direito de possuir quantas armas quiser. O que este Supremo decidiu agora é que o cidadão também pode andar armado em qualquer lado. Portanto, em vez de dificultar ou controlar, ou pelo menos verificar a idoneidade do portador, o que passou a ser lei federal é que qualquer radical, ou doente mental, ou maluco por armas, pode andar de pistola à cintura ou AR-15 ao ombro “para proteção pessoal”. Voltámos ao velho Oeste!
O terceiro caso tem a ver com as proteções ambientais. Há duas peças legais, a Lei do Ar Limpo e a Lei da Água Limpa, que são controladas por uma agência federal, a EPA (Environmental Protection Agency). Desde que foram promulgadas, em 1970, que têm sido contestadas pelas indústrias, desde a mineração aos componentes electrónicos, uma vez que limitam a poluição, ou exigem uma produção menos poluidora que sai muito mais cara. Também variam de Estado para Estado, mas, em geral, a regulação não tem parado de crescer desde 1970, devido à forte pressão da opinião pública.
A decisão do Supremo, em West Virginia vs. EPA, retira à agência o poder executivo – corta-lhe os dentes, digamos assim - passando para as legislaturas federal e estaduais o direito de estudar caso a caso. Ou seja, se uma indústria polui um rio, a EPA não pode simplesmente tirar-he a licença, ou multá-la; a decisão tem de passar pelo legislativo do Estado ou, se for um caso que abrange vários Estados, pelo Congresso em Washington. Não é preciso mais para tornar o processo moroso e sujeito às pressões e lobies que envolvem os congressistas, federais ou estaduais. Como resumiu o Procurador-Geral da Virgínia, “o que vamos fazer é garantir que sejam as pessoas certas, dentro do nosso sistema constitucional, a tomar as decisões certas. Estas agências federais (no caso, a EPA) não têm capacidade para actuar sozinhas, sem um consentimento claro do Congresso”. Para quê deixar para os especialistas decisões que podem trazer vantagens aos políticos?
Decerto que esta volta ao passado não vai ficar por aqui. Bem que Donald Trump prometeu, quando foi eleito, que os efeitos da sua presidência se iriam sentir por décadas. Serão precisas outras décadas para voltarmos a olhar para o futuro.
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