Entre panteras e dragões

Na semana passada, fui ao Porto. Foi a primeira viagem um pouco mais prolongada que fizemos com o Matias, o mais recente descendente deste que aqui vos escreve.

Pois bem, o Simão — o outro descendente — andava com ganas de ver os dois estádios lá da terra. Enfim, aos cinco anos, perdoa-se a obsessão. É uma criança que gosta mesmo muito de conhecer os nomes, símbolos e estádios de todos os clubes — e dar chutos na bola nas aulas de futsal lá na escola (e, ai, lá em casa).

Lá fomos nós ver a pantera à porta do Estádio do Bessa. Logo a seguir, deslizámos pela VCI até ao Estádio do Dragão. Ele arregalou os olhos, bem feliz — e pediu-me para ir ver o estádio do Sporting de Braga. Tivemos de lhe explicar que, enfim, Braga não é longe, mas também não é assim tão perto. Tinha de ficar para outro dia.

Quando já nos estávamos a afastar do famoso Dragão, aconteceu algo inesperado.

Os palavrões na boca dos filhos

Repare o leitor: há muitas famílias onde os filhos, mesmo quando já são adultos, evitam dizer palavrões ao pé dos pais. Uma questão de pudor. Pois, esse pudor desaparece nos estádios: é vê-los, filhos que à mesa do jantar nem um «caraças» dizem, a gritar impropérios aos ouvidos do avô dos seus filhos. Os estádios põe-nos a chamar nomes em família a certos familiares dos árbitros — isto quando não acarinhamos os jogadores da nossa equipa com insultos bem salgados (é, aliás, curioso como chamamos mais nomes aos nossos jogadores do que aos jogadores dos outros).

Pois bem, o que aconteceu de inesperado foi isto: talvez por ter apanhado o espírito do local, quando estávamos já a voltar para o nosso poiso, o Simão começou a dizer asneiras como se estivesse a ver um jogo e a coisa não estivesse a correr bem à sua equipa.

Ficámos de boca aberta: não era a primeira vez que ele testava os nossos ouvidos, mas nunca o tínhamos visto com aquele à-vontade no uso de certas e determinadas expressões. Não julguem o rapaz: é novo, anda a testar as palavras — e quem nunca, num dia aziago, debitou palavrões como quem conta de 1 até 10 que atire a primeira crítica.

Acontece a todos: os miúdos ouvem certas palavras e testam-nas ao pé dos pais. Foi então que tivemos de fazer aquilo que, assim de repente, parece hipocrisia: afinal, nós também dizemos estas palavras (muito de quando em quando, asseguro ao leitor mais pudico) — mas não podemos deixar passá-las em claro na boca do miúdo. Toca de dizer, com voz séria e sem ponta de sorriso, que aquilo não se diz. Ele pergunta porquê. E eu lá tive de usar o famoso argumento: não se diz, ponto final!

Pois ele ignorou o meu profundo argumento e continuou a debitar vocabulário colorido. A minha mãe estava connosco e ria-se, que isto quando se é avó já se ouviu de tudo. Nós, os pais, pensámos: como parar aquilo? Precisávamos que ele se calasse, para o irmão dormir e as nossas bochechas desruborizarem.

Como inventar palavrões

Tive então uma ideia! Mas antes de explicar o que fiz, deixe-me contar um episódio da minha vida profissional. Há muitos anos, ali por volta de 2003, trabalhei para uma empresa de legendagem. Foi nessa altura que tive de traduzir os extras do DVD do filme Virgem aos 40 Anos (com Steve Carell). Os extras incluíam esta cena (que aparece no filme, mas muito censurada).

Use o leitor o Urban Dictionary se quiser saber o significado de muitas das expressões que aparecem neste pequeno vídeo. Mas não aconselho que o faça à hora das refeições: é coisa para estragar um jantar. Traduzi isto em 2003 e ainda me lembro do significado de algumas delas — perdi a inocência nesse dia.

O certo é que, para traduzir isto, tive de inventar palavrões, ou seja, criar expressões que soassem a palavrão. Julgo que nenhuma delas pegou: afinal, apenas três pessoas viram aqueles extras — e uma delas fui eu.

Contei isto para chegar à grande ideia que tive para interromper a saraivada de palavrões do meu filho.

Disse-lhe o seguinte:

— Simão, faças o que fizeres, nunca digas aquela palavra...

— Qual palavra, pai?

— Aquela mesmo muito feia.

— Qual?

— Eu vou dizer, mas só uma vez.

— Sim, diz, vá lá.

— Nunca, mas nunca digas… xiló!

E foi assim que fomos até ao apartamento a ouvir o novíssimo palavrão «xiló» a sair em modo de repetição da boca do meu filho.

Sim, eu sei, não mereço perdão: não só não deixei o rapaz usar bom e genuíno vocabulário português, como menti — mas os pais nem sempre fazem o mais acertado.

No dia seguinte, ele perguntou-me o significado de «xiló». Tinha duas opções: dizia a verdade ou deixava-o acreditar que a palavra era uma asneira — com consequências inimagináveis: talvez daqui a uns anos, na escola dele, todos digam «xiló» e pensem que é asneira (o significado lá o hão-de ter encontrado). Qual opção escolhi? Digo noutro dia.

Enfim, estou certo que logo, ao final da tarde, ninguém chamará «meu grande xiló» ao árbitro. A coisa será mais séria e bem quente. Já para o meu filho, o futebol é ainda um festival de desenhos, estádios com estátuas de animais à porta, cromos para colar na caderneta e minutos bem passados com os colegas na escola. E os palavrões? São palavras que não querem dizer nada e servem apenas para fazer os pais corar.

(Tinha uma conclusão qualquer para este texto — grave e sonora como uma frase antiga. Mas não me lembro e, entretanto, ele está a chamar-me para jogar à bola. Bom jogo!)

Marco Neves | Tradutor e professor. Autor do livro A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa. Escreve no blogue Certas Palavras.

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