Donald Trump, que gosta tanto de se mostrar agressivo, é afinal um Presidente pouco favorável aos confrontos armados. Não só não iniciou nenhuma operação militar nestes quase três anos de mandato, como impediu outras de que os seus assessores gostariam, como na Venezuela ou no Irão, e ainda tentou retirar as tropas americanas de velhos teatros de guerra, como o Afeganistão ou a Síria. Quanto aos inimigos históricos, a Rússia e a Coreia do Norte, tem feito uma política de apaziguamento.
No caso da Rússia, as suas atitudes chegaram ao ponto de levantar fortes suspeitas de que Putin têm algo de comprometedor contra ele, para não falar de como sabidamente influenciou a eleição do Presidente norte-americano. No caso da Coreia do Norte, Trump não percebe, ou não quer perceber, o jogo de espelhos que os Kim praticam há décadas para manter a sua original monarquia comunista e permite-lhes aumentar exponencialmente a sua capacidade nuclear.
Esta semana, andou Trump embrulhado domesticamente com ameaça concreta de ser impugnado, o que tem açambarcado os noticiários. Mas de repente, não se sabe exactamente porquê – mas sabe-se que contra a opinião de todos os assessores, militares e republicanos – tomou a decisão de abandonar o teatro de guerra da Síria. É verdade que tinha proclamado, falsa e bombasticamente, que o Califado Islâmico foi derrotado; mas também é certo, e toda a gente sabe disso, que o ISIS está muito longe de extinto; calcula-se que ainda haja cerca de dez mil combatentes activos, em bolsas espalhadas pela região que já dominou. A directora do Projecto de Defesa Conjunta do Centro de Estudos Estratégicos Internacionais, em Washington, confirmou que há provas concretas de que os militantes do ISIS continuam activos.
A derrota do ISIS deve-se, em grande parte, aos curdos que, em conjunto com as SDF (“Self Defence Forces”), os grupos sírios opostos ao Presidente Assad) e apoiados pelos norte-americanos, ocuparam todas as cidades do Califado, com um fraco apoio do Iraque e a ausência do Governo Sírio, engolfado pela sua horrenda guerra civil – essa, com o apoio dos russos.
Os tweets e afirmações de Donald Trump têm sido, como habitualmente, contraditórios. Num deles, escreveu: “Podemos estar a sair da Síria, mas de modo algum abandonamos os curdos, que são um povo muito especial e guerreiros maravilhosos”. Mas numa troca de comentários com os jornalistas, no dia seguinte, afirmou que os curdos não ajudaram os americanos na II Guerra Mundial, especialmente no desembarque na Normandia. A pertinência desta afirmação dispensa comentários.
Os curdos são o quarto maior grupo étnico do Oriente Próximo, cerca de 45 milhões. No famoso acordo Sykes-Picot, em 1916, que dividiu as áreas de influência inglesas e francesas nos despojos do Império Otomano, o Curdistão não foi considerado. O resultado foi que os curdos ficaram espalhados pela Turquia e Irão e pelos países resultantes do acordo, o Iraque e a Síria. Depois da queda do Império Otomano, a nova República Turca não reconheceu a sua identidade. Chegou a haver promessas de criar um Curdistão, mas os interesses das grandes potências internacionais e das potências locais nunca o permitiram.
Embora sejam muçulmanos, parte xiitas e parte sunitas, e ainda zoroastristas e cristãos, distinguem-se dos povos em redor por uma cultura mais aberta, sem livros proibidos ou obrigatórios, e em que as mulheres têm estatuto igual ao dos homens.
Nos países onde estão instalados têm sido brutalmente reprimidos e perseguidos. Os turcos tratam-nos de tal maneira que formaram um grupo de resistência, o P.K.K., considerado terrorista pelas autoridades de Ancara. No Iraque, Saddam Hussain chegou a gazear a cidade de curda Halabja, em 1988. Os iranianos proíbem-lhes qualquer manifestação identitária, punida com a morte. Quanto aos Assad, pai e filho, que nunca hesitaram em massacrar cidades inteiras dos seus próprios cidadãos, não é preciso dizer como lidaram com a minoria curda ao norte da Síria.
Durante anos, os norte-americanos também consideravam o P.K.K. um grupo terrorista, uma vez que eram aliados da Turquia na NATO. Mas a situação mudou a quando da segunda guerra do Iraque que levou à queda do regime de Saddam Hussein. Os curdos aproveitaram a invasão norte-americana para criar um estado semi-independente, com estrutura administrativa e forças armadas, no norte do Iraque, na fronteira com a Turquia e a Síria. O resultado foi uma aliança informal com os Estados Unidos, aliança essa que se provaria providencial quando surgiu o Califado Islâmico, inicialmente a oeste da Síria e depois por todo o norte do Iraque.
O exército curdo, o único da região que inclui mulheres, é formado pelas YPG (Unidades de Protecção do Povo) e pelos Peshmerga, uma tropa de elite famosa pela sua combatividade.
Quando rebentou a guerra civil na Síria, os curdos conseguiram criar uma zona independente, chamada Rojava, que era a continuação da zona iraquiana que já controlavam.
As YPG acabaram por se juntar aos outros insurgentes contra Bashar al-Assad, formando as SDF em 2015, com apoio logístico e aéreo norte-americano. E foram as SDF, com os Peshmerga à frente, que efectivamente destruíram o Califado Islâmico e ocuparam o seu território.
Ao mesmo tempo, Assad lutava pela sobrevivência do seu regime, apoiado pela Rússia. Foi esse apoio que lhe permitiu ocupar parte das áreas sírias do Califado.
Esta expansão era vista com crescente preocupação pelo novo sultão turco, Recep Tayyip Erdoğan e criou uma situação irresolúvel para os norte-americanos, aliados da Turquia e do informal Curdistão que se ia formando.
Até agora, isto é, até à semana passada, a situação era estável (até ao ponto em que e pode falar em estabilidade na região); o exército sírio tentava eliminar as últimas bolsas rebeldes no seu território, ou seja, as SDF, com a ajuda dos russos; os iraquianos, que nunca mais tiveram um exército coerente desde a derrota de Saddam Hussein, não interferiam nas zonas curdas conquistadas ao Califado; os norte-americanos ajudavam os curdos a limpar os restos do Califado, aceitando informalmente a existência dum pseudo Curdistão; e os turcos, cada vez mais preocupados com o que viam como uma extensão do P.K.K., o grupo “terrorista” curdo no seu território, aguardavam uma oportunidade.
Milhares de ex-combatentes do ISIS e suas famílias estão detidos em campos a oeste da Síria, isto é, na fronteira sul com a Turquia. Trump afirmava que estes prisioneiros seriam da responsabilidade dos turcos, uma vez que os sírios, aliados dos russos, não são confiáveis. Erdogan recusava o encargo, mais preocupado com um Curdistão que se poderia expandir para o seu território.
Não se sabe porque Trump decidiu retirar as tropas norte-americanas da região, efectivamente abrindo o caminho para uma ofensiva turca. Do ponto de vista estratégico, a entrada dos turcos e a retirada das SDF e dos curdos abre um vácuo onde se receia que o Califado Islâmico ressurja – para não falar do massacre dos curdos pelas tropas de Ancara, muito mais numerosas e bem equipadas.
Dizem as más línguas que os interesses de Trump na Turquia, onde tem dois hotéis e outros negócios não identificados, teria levado a um acordo com Erdogan. Mas, sejam quais foram as razões, os norte-americanos estão a retirar, contra a opinião dos seus próprios estrategas e comandantes no terreno. E os turcos lançaram uma enorme ofensiva a partir de quarta-feira. Neste momento já ocupam uma larga faixa de território e há notícias das habituais atrocidades. Calcula-se que mais de três milhões de refugiados estejam em movimento e suspeita-se que os ex-guerrilheiros do ISIS estejam a abandonar os campos.
A União Europeia condenou logo a invasão turca. Uma condenação não corresponde a nenhum resultado prático; mas, pelo sim pelo não, Erdogan avisou imediatamente que se a Europa fizer alguma coisa (deixar de importar pistáchios?) manda para cá os 3,6 milhões de refugiados sírios que tem no seu país. Se o deixarem agir, mandará então os refugiados para o seu país de origem, a Síria. De qualquer maneira, a UE não tem tropas para meter no terreno, na improvável hipótese de que o quereria fazer.
Nos Estados Unidos há um consenso de que é imoral abandonar o único aliado que tinham na região, além do perigo real de que o Califado e os seu horrores voltem a atormentar as boas consciências ocidentais.
Uma coisa é certa: mais uma vez, os curdos têm de lutar sozinhos pela sua sobrevivência.
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