O Apocalipse foi escrito pelo apóstolo João, o mais jovem dos discípulos de Cristo, durante o seu exílio na ilha de Patmos. Sozinho, sujeito a visões alucinantes, escreveu esta obra que relata o fim dos tempos. Numa linguagem épica, fala dos Quatro Cavaleiros simbólicos que espalharão o terror nessa época terrível: Guerra, Fome, Peste e Morte.
Olhando para o Brasil de hoje, um país tão imenso, tão rico, e com um povo alegre e espiritual, a comparação parece estapafúrdia. Infelizmente, não é.
Como se traduzem os cavaleiros da profecia para a actualidade? A Guerra ocorreu quando da instauração da ditadura militar, em 1964, resultando numa luta surda, escondida pela censura, mas que teve um número nunca confirmado de torturados e mortos. Alguns factos ficaram na memória, como a Guerrilha do Araguaia, o rapto do embaixador dos Estados Unidos por um grupo de guerrilheiros e a morte sob tortura do jornalista Vladimir Herzog, entre muitos outros episódios.
A Fome traduz-se em 13,5 milhões de pessoas que vivem em extrema pobreza. Esse número pode aumentar até ao final do ano, chegando aos 14,7 milhões (7% da população), com a ONU a alertar que o Brasil pode regressar ao chamado "Mapa da Fome".
A Peste acabou de chegar, e esta quarta-feira o Brasil, que não faz testes extensivamente, já registava 188.974 casos e 13.149 mortes provocadas pelo novo coronavírus. Na quinta os infectados tinham passado para 202.918. Era o Cavaleiro que faltava, e dele já falaremos adiante, uma vez que faz parte integrante da actuação do Presidente Bolsonaro.
A Morte pode ser medida pela violência, descontrole e prepotência das forças policiais, e outras arbitrariedades. O país teve cerca de 41 mil vítimas de crimes violentos no ano passado e registou quase 8 mil assassinatos nos primeiros dois meses de 2020. De acordo com a ONU, o Brasil é o segundo país mais violento da América do Sul com 30,5 homicídios por cada 100 mil habitantes.
Quanto à corrupção, é verdade que ela existe em todos os países, mas também é evidente que uns são mais do que outros. É difícil estabelecer níveis e ainda mais compará-los, mas o noticiário se encarrega de mostrar que no Brasil a corrupção chegou a níveis inimagináveis nos governos do PT, vindo já de níveis brutais anteriores. Do actual Governo, espera-se que não aumente, mas também que não diminua.
Este quadro é mais desolador quando se aplica a um país que tem potencial para ser um dos grandes, tanto do ponto de vista económico – as matérias primas, a diligência e empenho dos trabalhadores, a visão dos empreendedores – como do humano – não lhe faltam artistas, cientistas, escritores, poetas e sonhadores.
Como se chegou até este estado? Há quem goste de recuar até à colonização portuguesa, mas o facto é que os imigrantes portugueses não constituem nem o maior grupo nacional nem o mais preponderante em termos de influência. Nem se trata aqui de contar a História do país desde o tempo das capitanias, ou mesmo a quando da independência, em 1822. Ou da proclamação da República, em 1889, ou a ditadura de Getúlio Vargas entre 1930 e 1945. O Brasil teve um grande momento de confiança nacional e desenvolvimento durante o governo do social-democrata Juscelino Kubitschek, entre 1956 e 1961, quando arrancou a indústria automóvel e se planeou a futura capital federal, Brasília.
Contudo, a república presidencialista foi perdendo velocidade, enquanto a corrupção subia às mais altas escalas dos poderes e se dava uma deriva à esquerda. No período da Guerra Fria, os Estados Unidos mantinham as américas latinas sob rédea curta e os movimentos de esquerda, geralmente comunistas e sempre anti-americanos, ganhavam força. Quando as peripécias da política colocaram na presidência um radical de esquerda, João Goulart, Washington deu luz verde aos militares para travar o “perigo comunista”. Em 1964, uma junta militar tomou o poder e acabou com a democracia parlamentar. Instituiu-se a censura, o partido único (aliás, um sistema de dois partidos, o do governo e o da oposição, sendo que oposição era impedida de qualquer decisão de relevo, num modelo não muito distante do Portugal do Estado Novo).
Os generais mantiveram-se no poder até se cansarem e retiraram-se em 1988, com uma nova Constituição presidencialista e a restauração dos partidos e das liberdades.
Seguiu-se um período com predominância de presidentes centro-direita (no conceito europeu) com bastante desenvolvimento, mas muita corrupção. O Brasil chegou a sétima economia mundial sem nunca conseguir resolver os seus problemas estruturais, em particular a educação, a segurança social e, de um modo mais geral, o sempre crescente fosso entre a classe média/alta e os mais pobres.
É neste contexto que Lula da Silva se torna Presidente, em 2002, numa campanha em que um dos temas principais era “acabar com a corrupção”. O PT, aliado a outros partidos de esquerda, inclusive o PCdoB (Partido Comunista do Brasil, vindo dos tempos da Guerrilha do Araguaia), lançou vários programas para diminuir a pobreza e dar oportunidades às classes baixas. Depois de cumprir os dois mandatos que a lei constitucional permite, passou o cargo para uma fiel, Dilma Rousseff, em 2010.
Nessa altura já a classe política, tanto à esquerda como à direita, tanto evangélicos como materialistas dialécticos, estava completamente vendida aos interesses dos grandes empresários. A corrupção atingiu níveis nunca vistos, e os escândalos rebentavam constantemente: o Mensalão, Petrolão, Lava Jato, empréstimos a fundo perdido a países “irmãos” (Cuba, Venezuela, Peru). Só para dar um exemplo, o PT esvaziou de tal modo a Petrobrás, que esta passou da quinta maior petrolífera do mundo em 2008 para décima terceira em 2013. O valor de mercado desvalorizou 50% entre 2014 e 2015.
Em 2016 Dilma foi cassada numa manobra política no Congresso, sendo substituída por uma figura que desagradava a todos, Michel Temer. Tão mau que nem se candidatou à eleição de 2018.
Nessa eleição, o PT ganharia, apesar de todos os escândalos, pela popularidade e carisma de Lula da Silva, que já se podia candidatar. Contudo, as forças que se lhe opunham não podiam permitir tal coisa e conseguiram um processo judicial que o levou à prisão – e consequente impossibilidade de concorrer.
Quem são essas “forças”? No emaranhado de interesses que actualmente faz da política brasileira um verdadeiro puzzle de mil peças, foram os jornalistas e comentadores que as conseguiram identificar: BBB – Bíblia, Boi e Bala. O seja, os evangélicos, que há muito têm um projecto de poder, a criação de uma espécie de República Teocrática; os grandes proprietários rurais, que querem explorar as riquezas da Amazónia, e os militares, que acham que a bandalheira dos civis já ultrapassou os limites.
Sem Lula, o PT foi buscar uma figura sem carisma, Fernando Haddad. Mas não foi a falta de charme que o fez perder, mas sim a cansaço da classe média com a corrupção, da qual pouco beneficiou e muito perdeu.
Como certamente que não o foi o carisma que elegeu Jair Bolsonaro. Militar expulso das forças armadas por insubordinação, deputado desde 1991 em sete mandatos ao serviço de vários partidos, sem um único projecto de lei apresentado, bastante tosco no modo e na fala, nada o indicava para o cargo mais alto do país. Por isso mesmo, os influenciadores BBB acharam que tinham ali o homem ideal para fazer o que eles quisessem.
Contra Bolsonaro jogava ainda o facto de ser machista declarado (ao nível de insultar as mulheres em frente das câmaras), fascista convicto (defensor tronitroante da Ditadura Militar de 1964, da tortura e da censura) e admirador incondicional de Donald Trump – figura que os brasileiros vêem com a mesma consideração que os europeus, com a agravante de ser norte-americano, imperialista.
Bolsonaro foi eleito na segunda volta por uma margem pequena. Na verdade, a classe média não votou nele, votou contra o PT. Para logo ficar chocada com as mudanças na política externa brasileira, que passou a alinhar cegamente com os Estados Unidos, com a inconsistência da política interna e, sobretudo, com o facto de não se verem mudanças notáveis, nem mesmo tímidas, nos desmandos herdados do PT. Bolsonaro, mais militarista do que os militares, defende abertamente a ditadura; mais racista e anti-ambientalista do que os proprietários rurais, que querem é explorar as riquezas do país e afastar as tribos das terras ricas em tudo (madeira, minerais, chão arável) e acham a defesa da natureza uma invenção da esquerda; mais pateta do que os evangélicos, que de parvos nada têm e usam a religião como alavanca para o dinheiro e o poder.
Em cima deste quadro apocalíptico só faltava mesmo a Peste. Bolsonaro, tal como o seu ídolo, Donald Trump, acha que é apenas “uma gripezinha”, “que homem que é homem não tem medo de nada e que a prioridade é a economia, não a saúde.
Ainda esta semana, quando um jornalista recalcitrante lhe lembrou que o Brasil já está em sexto lugar no número de infectados e mortos, respondeu: “E então? Tenho muita pena, mas o que querem que eu faça? Demitir-me?”
Entrou em guerra aberta com João Dória, o petulante Governador de São Paulo, por este querer confinar a população do Estado; Bolsonaro não quer confinamentos, nem campanhas higiénicas, nem prevenção.
Numa reunião (virtual), com um grupo de grandes empresários, Bolsonaro pediu-lhes para "jogarem pesado" contra Doria, de modo a retomar imediatamente as “actividades do mercado.”
O ministro da Saúde, o médico (ortopedista) Luis Henrique Mandeta, tinha opinião diferente; era preciso mesmo parar as empresas, antes que a epidemia se tornasse uma hecatombe, num país sem estruturas sanitárias nem pessoal habilitado em quantidade suficiente. Foi demitido a 14 de Abril.
A 17, o Presidente nomeou novo ministro, o também médico (oncologista) Nelson Teich. Considerado um fiel a Bolsonaro, mas essa fidelidade era, quiçá, apenas política; nas questões de saúde achava que a defesa da cloroquina como medicamento contra o coronavírus não era uma boa ideia (como Trump acha que é, e Bolsonaro acha que Trump é um modelo a seguir).
Teich apresentou a demissão esta sexta-feira, 15 de maio.
Quem se seguirá? Ao que tudo indica – estamos em cima do acontecimento! – será o general Eduardo Pazuello, número dois da pasta de Saúde (Especialidade: oficial de Intendência). Pelo menos, não sendo médico, não contrariará as opiniões do chefe.
O Brasil, um país com tantas possibilidades, não merecia ter uma espécie de Trump de segunda a preparar o seu futuro. Que, mais uma vez, fica adiado.
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