Quando, a 22 de Março, a coligação de curdos, sírios e iraquianos, apoiada por americanos e russos, proclamou a queda da última aldeia do autodenominado Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS), o pesadelo parecia terminado. Mas tudo mostra que está apenas a começar.
O mais terrível dum cancro é que nunca se sabe se está erradicado. Extrai-se o tumor e as metástases podem aparecer depois, em qualquer lado. É o que se está a passar com o ISIS. Quando o Daesh (o nome em árabe, que eles não gostam), foi proclamado pelo “verdadeiro califa”, Abu Bakr al-Baghdadi, na mesquita de Mosul, no Iraque, no primeiro dia do Ramadão, 24 de Junho de 2014, a notícia foi recebida com incredulidade. A organização já existia desde 1999 mas, como é prática dos movimentos de guerrilha, não se esperava que ocupasse um território demarcado.
A Al-Qaeda, e todos os movimentos semelhantes antes e depois, funcionam segundo uma estratégia consagrada desde que há guerrilheiros a lutarem a chamada “guerra assimétrica” contra um exército regular: atacam e depois desaparecem no mapa, deixando as forças que os perseguem sem alvos concretos para derrotar. Se acabam por dominar algum território, é porque a “tropa de quadrícula” desiste de penetrar em certas zonas, pois sempre que lá vai é emboscada e volta sem uma vitória que se veja.
Mas esta tomada de posição do ISIS tinha a ver com a sua ideologia: a recriação do Sultanato sunita, regido rigorosamente pela Xaria, que serviria de base para a islamização do mundo.
Durante os anos seguintes, o Daesh surpreendeu esse mundo – cristão, xiita, pagão – ao ocupar efectivamente um território de 210.000 km2, com 12 milhões de habitantes, praticando as mais criativas atrocidades de que há memória e publicitando-as ao vivo e a cores nas redes sociais. Por razões que até hoje se discutem, mas nunca se hão-de compreender, jovens de dezenas de países tão diversos e distantes como Trinidad e Tobago, Camboja, Austrália e Chile aderiram à missão. Muitos deles, cultos e com excelentes conhecimentos técnicos, trabalharam afincadamente para o Califado mostrar sofisticados vídeos profissionais das barbaridades que cometia contra os “infiéis” e da destruição de património histórico dentro do seu território.
Um bom exemplo é Palmyra, uma cidade grega, romana e persa, Monumento Histórico Mundial classificado pela UNESCO em 1980. O ISIS ocupou-a duas vezes, em 2015 e 2016. Da primeira, decapitaram Khalid al-As’ad, o arqueólogo de 83 anos que tomava conta do local. Da segunda, no palco do anfiteatro, um grupo de crianças executou com um tiro na nuca dezenas de de prisioneiros ajoelhados.
(Ainda em 2016, quando os sírios retomaram Palmyra, com o apoio dos russos, Vladimir Putin assistiu a um concerto por uma orquestra sinfónica de Moscovo no mesmo palco.)
A população civil do território, que estava farta da violência, descaso e corrupção dos governos da Síria e do Iraque, começou por receber com alívio os novos senhores. Mas Damasco e Bagdade praticavam um islamismo soft, com hábitos ocidentais. O ISIS obrigou os homens a deixar crescer a barba e a usar vestes próprias, proibiram-nos de fumar, ouvir música e beber; quanto às mulheres, emburcadas de preto, não podiam trabalhar, nem estudar, nem sair sozinhas de casa. As que os seguiam – muitas estrangeiras, como sabemos – destinavam-se a ter filhos em série e calar a boca. As conquistadas ao inimigo eram distribuídas pelas tropas e violadas. Não admira que a população visse com alívio a chegada das tropas da coligação. Sim, porque a ideia de manter um território deu aos inimigos – não só os já citados iraquianos, sírios, curdos, russos e americanos, mas também turcos, europeus e até voluntários vindos de outros países – a possibilidade de atacar e ocupar terreno.
Uma a uma, as cidades do Califado foram sendo recuperadas, sempre em combates casa a casa, cara a cara, com todos os truques sujos, como objectos e casas armadilhados e civis a servir de escudo. A 22 de Março caiu Baghouz, a última aldeia, o que foi anunciado com pompa e circunstância pelos presidentes dos países vencedores.
O fim do pesadelo? Nem pouco mais ou menos. Logo para começar, os operacionais no terreno reconhecem que há pequenas bolsas de guerrilheiros espalhadas pelo antigo território do Califado. Em terriolas onde tudo parece normal, de repente despontam alguns confrontos, há tiros, bombas. Mas isso é o menos. Pior são os que escaparam nas várias fases da guerra e que podem ter voltado para os seus países de origem, ou para onde não estão identificados.
Entretanto, há os focos noutros países que, ainda durante a vigência do Califado, decidiram que também eram ISIS. São grupos que já praticavam a violência em nome do islamismo – que, não esqueçamos, é uma religião com mil e seiscentos milhões de praticantes, sendo a esmagadora maioria pacífica. Podem ter hábitos privados, como atitude em relação às mulheres, que consideramos questionáveis, mas em público são pacatas famílias, tementes a Deus e respeitadoras da ordem onde vivem.
Desses grupos, o mais terrivelmente famoso talvez seja o Boko Haram, que actua com impunidade na Nigéria. Fundado em 2002 por Mohammed Yusuf, com objectivos pacíficos – a purificação do Islão – a partir de 2009 começou a matar infiéis e a raptar raparigas, e a partir de 2016 declarou fidelidade ao ISIS e espalhou-se pelo Chade, Camarões e Benim.
Ainda em 2016, al-Baghdadi exortou os os seus seguidores no estrangeiro a atacar os “infiéis” em qualquer parte do mundo. Numa mensagem audio, em 2017, afirmou: “Soldados do Califado, soprem as chamas da guerra contra os vossos inimigos, ataquem-nos e cerquem-nos em toda a parte e mantenham-se atentos e corajosos.”
Segundo a BBC, citada pelo “The New Yorker”, em 2018 o ISIS esteve ligado a pelo menos 3.670 ataques, dos quais 300 no Afeganistão (onde concorre com a Al-Qaeda), mais de 180 no Egipto, cerca de 60 da Somália, mais de 40 na Nigéria e no Iémen, e 27 nas Filipinas.
Não se sabe exactamente quando um ataque é organizado por uma verdadeira célula do ISIS, ou por um grupo avulso de entusiastas a usar o nome para chamar a atenção, ou ainda alguém que se sente “inspirado” a seguir a jihad por conta própria. Pode dizer-se que “ISIS” se tornou uma marca de sucesso entre os raivosos deste mundo, com muitas franquias e também com muitas imitações e contrafacções. “Fica bem” a um ou mais jovens, com vontade de matar e morrer, dizer que também estão a cumprir uma missão “sagrada”.
E assim chegamos ao inesperado ataque que aterrorizou o Sri Lanka e espantou o mundo. Ocorreu exactamente um mês após a morte oficial do Califado territorial. A responsabilidade foi pela agência noticiosa do ISIS, Amaq, num dos chat rooms [janela de conversação] da app Telegram. Outro comunicado incluía um vídeo com oito homens em frente à bandeira do ISIS, sete com o rosto tapado, a jurarem fidelidade à causa. A voz que se ouve em fundo diz que cada um deles foi para um local conotado com o “feriado dos infiéis”.
Porque foi escolhido o Sri Lanka, não se sabe. Entre os combatentes que estiveram na Síria, só 32 seriam naturais do país. Os muçulmanos são apenas 10% dos 21 milhões habitantes.
Segundo o “The Atlantic” o ataque foi imediatamente a seguir a outro, falhado, na Arábia Saudita, outro bem-sucedido no Afeganistão e simultâneo ao aparecimento do grupo na República do Congo. Como a revista notou, há uma novidade: os comunicados agora não são apenas em inglês e árabe; também foram emitidos em tamil, um idioma falado por cerca de 35 milhões no estado indiano de Kerala – ou seja, a organização tem “soldados” que falam línguas regionais minoritárias. Segundo um especialista citado pela revista, “esta capacidade coloca-os de novo no circuito noticioso de um modo positivo e condiz com o que sempre disseram, que continuariam a sobreviver e a expandir-se.”
Num programa da BBC emitido no sábado, o embaixador do Sri Lanka nas Nações Unidas repetiu que as autoridades do país tinham ouvido rumores sobre um possível ataque, mas não acreditaram – um deslize fatal. A jornalista do “New York Times” Rukmini Callimachi, especialista em grupos jihadistas, acha que a ideia de que o atentado foi “vingança” pelo ataque a centros islâmicos de Christchurch, na Nova Zelândia, não faz sentido, porque uma operação destas envolve uma longa preparação e estes ocorreram em 15 de Março. Na verdade, nada do que se passou no Sri Lanka faz sentido, nem sequer ter sido naquele país, o que aumenta o pavor universal que o ISIS pretende.
Uma coisa é certa: a organização metastizou, está activa e tende mais a crescer do que a minguar. Tal como com a Al-Qaeda, a erradicação da base só serviu para espalhar o cancro. E, comparando uma com a outra, o ISIS é mais selvagem, ou inspira imitações mais brutais. O planeta tornou-se um mundo perigoso.
Qual o segredo do sucesso da marca? Explicações não faltam, mas no fundo todas se resumem ao mesmo: desencanto com as opções de vida disponíveis; vontade de protagonismo em sociedades onde o anonimato significa isolamento e carência. E também a famosa estupidez humana, a tal contra a qual lutaram em vão os deuses do Olimpo.
Como se poderia dizer, desajeitadamente, ainda a procissão vai no adro...
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