Ah, os primeiros dias do primeiro ano dos nossos tempos de faculdade…

Em cada Setembro, de todo o país, chegam jovens de 18 anos nervosos e livres, na expectativa deste mundo novo que aí vem. (Alguns até virão da rua ao lado, mas o mundo é outro, a vida é nova.)

Por esses dias, as histórias são imensas e, se para quem vê de fora parece tudo igual, quem está a viver esses dias sente-os como histórias mais interessantes do que todas as narrativas do mundo desde o início dos tempos.

Ainda por cima está sol e estamos em Lisboa. Ou, pelo menos, estava eu e estavam os meus futuros amigos quando nos vimos pela primeira vez na faculdade.

Um dos aspectos curiosos desse primeiro encontro entre pessoas de todo o país (muitos dos quais serão amigos para a vida) são as pequenas diferenças linguísticas. Notamos ou não notamos, gozamos ou não gozamos, mas há ali um primeiro embate — que presumo até ser maior da parte dos lisboetas. Afinal, quem vem de fora já está mais habituado ao sotaque da capital, todos os dias a dar na televisão.

Digo-vos tudo isto como desculpa para contar umas histórias sobre a língua, regadas com algumas recordações daquilo que se passou comigo e com os meus colegas.

O sotaque madeirense da Avenida de Berna

Nesse ano em que entrei na faculdade, estávamos no final do século passado, lembro-me bem de um certo choque linguístico: ouvir as nossas colegas madeirenses.

As primeiras conversas foram difíceis. Houve até um caso duma colega que falava de tal maneira que nós, continentais, dizíamos que sim com a cabeça, para logo depois sussurrarmos:

  — O que é que ela disse?

— Não faço ideia!

A dificuldade demorou um ou dois dias a desfazer-se. Seja porque nos aproximámos na nossa maneira de falar, seja porque os nossos ouvidos se habituaram (ou talvez uma mistura natural dos dois processos), em breve já ninguém notava e lá nos ouvíamos um pouco diferentes uns dos outros, sem grande drama e com alguma graça.

Claro que estes choques de palavras tinham um lado mais sombrio. Havia um ou outro comentário mais maldoso quando alguém soltava uma construção menos normativa, por assim dizer — ou talvez menos habitual por terras de Lisboa. Basta pensar no caso de «o comer»…

Para algumas pessoas, ali a contactar com pessoas de origens diferentes pela primeira vez, havia uma certa estupefacção perante formas que as suas famílias lhes diziam ser erradas. Sim, mesmo alunos de Letras, com aulas de linguística, com todo o interesse em ser desempoeirados nesta como noutras matérias, resvalavam para o preconceito, tudo por causa desta ou daquela palavra. Isto também existe, não há que esconder.

Mas, enfim, tudo passava — e estas coisas não aconteciam só na língua: era na roupa, nos comportamentos, em tudo o mais. Somos um animal muito social e muito malandro. E interessante, também.

Depois, não é que alguns lisboetas (ou pelo menos gente da região) não sejam também vítimas de gozo linguístico. Afinal, qual é o sociolecto mais gozado por todo o país? O das famosas tias, claro está. Não serão lisboetas típicas, mas ainda assim…

Sou um homem do Norte, pois então. Pronto, vá, sou um homem a norte…

Entre amigos, o gozo é saudável. Se alguém se chatear, a coisa passa depressa. Exemplos? Comecemos por mim próprio, para não pensarem que não me quero molhar quando ando à chuva.

Nunca consegui descrever muito bem a forma como falo. Parece-me difícil saber que venho de Peniche só pelo sotaque; andarei ali a navegar pelos mares das pronúncias do Sul.

Dito isto, acho que é fácil perceber que não sou do Norte (se fosse, teria muito gosto, mas, não: cresci mais para sul, ali à vista do mar do Oeste).

Ora, uma amiga minha disse-me um dia, não sei a que propósito, que eu tinha sotaque (ou seja, tinha um sotaque diferente do sotaque de Lisboa).

— Mas que sotaque? — perguntei eu, genuinamente interessado.

— Não sei bem, mas dizes «cômigo» e não «comigo». Deve ser por seres do Norte.

Eu fiquei parado, a olhar para ela de boca aberta.

— Do Norte? Mas eu venho de Peniche!

— Exacto, do Norte.

Por momentos, vi barcos rabelos atracados na ribeira de Peniche e pipas de vinho do Porto no quintal dos meus pais e desatei-me a rir.

— Peniche é a norte de Lisboa, mas não é no Norte!

— Bem, não interessa, nasceste a norte de Lisboa, é normal que tenhas sotaque.

E passou a gozar comigo e com o meu «cômigo»…

Ah, mas a vingança chegou!

Anos depois, estava eu com essa minha amiga e alguém lhe diz que ouvia nas palavras dela o saboroso sotaque alentejano. A cara dela foi de tanta surpresa quanto a minha no dia em que ela colou a minha terra ali ao Porto de Leixões.

Agora, uma nota mais séria: talvez isto tudo seja sintoma do apagamento das várias pronúncias. Parece-me que cada vez mais se fala um sotaque indistinto, tanto que começa a ser difícil saber de onde vêm as pessoas pelo sotaque.

Isto não se aplica em todo o lado, nem a todas as pessoas. Mas julgo que, se os nossos bisavós se tivessem encontrado todos, um dia, em Lisboa, o choque teria sido muito maior e as diferenças bem mais marcadas. Porquê? Arrisco a dizer que será porque a escola se alargou a todos, há mais trocas e baldrocas sociais e regionais, há mais gente nas universidades, há a televisão, há a rádio. Assim, os portugueses andam a falar de forma mais homogénea. É bom, é mau? A escola, a universidade, até a televisão — é bom. Já quanto ao português homogéneo, digo o seguinte: é assim — e pronto.

O Porto ali no Cais do Sodré

Avancemos. A verdade é que a questão dos sotaques nunca foi muito importante para nenhum de nós. Era um pormenor, no meio de tanta história desses anos sempre agitados e muito vivos, muita dança, muita música, algum estudo e ainda mais conversa. O que nos interessava que alguém falasse assim ou assado desde que gostasse de Pearl Jam?

Curiosamente, tinha poucos colegas do Porto e, assim, não vos posso contar grande coisa sobre o contacto dos sulistas com os falares nortenhos.

Mas, anos depois, já a licenciatura acabada e o mestrado a começar, conheci uma rapariga que tinha vindo do Porto para estudar. Em conversa com ela e uma outra amiga, lisboeta de gema, a portuense afirma sem margem para dúvidas que a minha amiga lisboeta tinha um sotaque muito cerrado.

Para quem é de Lisboa, aquilo soava a disparate. Um sotaque de Lisboa? Ainda por cima cerrado?

Enfim, isto dos sotaques está na boca de quem fala, mas também no ouvido de quem ouve…

«Não sejas lambão!»

Agora, uma história mais doméstica. Conheci a Zélia, a minha mulher, na faculdade — era da turma que entrou no ano a seguir ao meu. Ainda antes de começar a namorar com ela, já eu sabia de algumas palavras típicas de Ponte de Sor, como «lapeira», que pelos vistos quer dizer «estojo». Isto, claro, não significa que tal palavra seja exclusiva de Ponte de Sor. Mas, para nós, amigos da faculdade, era uma das palavras da Zélia. Todos tínhamos as nossas, claro está… 

(Em Peniche, por exemplo, os jovens da minha altura — não sei se os de agora também — usavam muito o verbo «chincar», com o sentido de «tocar». Já agora, não faço ideia se se escreve com «ch» ou «x». Vai na volta, nunca ninguém tinha escrito tal palavra antes…)

Depois de começar a namorar com ela, lá comecei a saber mais algumas palavras dessa terra que também começou a ser um pouco minha.

Exemplos? Aventar: deitar fora; calhandrar: bisbilhotar; estravaliar: fazer disparates.

Aprendi estas novas palavras — e gostei de começar a falar um pouco de norte-alentejano. (Não sei qual será o verdadeiro mapa do uso destas palavras; para mim, são palavras de Ponte de Sor, que é lá que as oiço e é lá que as uso.)

Agora, a grande surpresa foi outra: estava eu um dia refastelado no sofá da casa dos pais da Zélia, a torrar ao calor imenso do Verão sempre muito quente de Ponte Sor, quando ela me diz algo do género:

— Não sejas lambão!

Franzi o sobrolho: mas que raio? Ora, se eu nem estava a comer…

Acabei por saber que, por lá, «lambão» não quer dizer algo semelhante a «sôfrego», mas antes «preguiçoso».

Muito me ri eu com aquele «lambão».

Mais uma vez, a vingança serve-se fria. E, assim, mais tarde, estávamos em Peniche, na casa dos meus pais, quando alguém — talvez o Tiago ou a Vera — perguntou onde estava o frasco do açúcar louro.

A Zélia começou a rir-se: 

— Açúcar louro?

Eu insisti que era assim que se dizia e ela lá me obrigou a ir à mercearia da minha avó ver o que estava escrito nos pacotes.

E, lá estava: «açúcar amarelo».

Raios.

A minha avó, sem perceber porque andávamos às turras por causa do açúcar, ia dizendo que era tudo a mesma coisa — mas não deixei de sofrer umas boas gargalhadas conjugais.

Os dias ditos assim

Alguns amigos meus dirão: «Mas de tudo o que aconteceu, é disto que ele se lembra?» Claro que não! Lembro-me de muito mais, mas estas são crónicas sobre línguas e, por isso, as outras histórias ficarão para depois.

Sim, é verdade: esses anos foram muito, mas mesmo muito mais… Lembro-me sempre do que disse Carlos ao Ega: «É curioso! Só vivi dois anos nesta casa, e é nela que me parece estar metida a minha vida inteira!» No nosso caso, não foram só dois anos, mas estão a ver a ideia.

Admito que estas minhas voltas pelas palavras são uma forma de recordar esses anos. Mais do que as palavras de cada região, todos tínhamos mesmo as nossas palavras. A Zélia chamava-me, ainda antes de começarmos a namorar, «Marco Bom Dia», porque eu dizia muitas vezes «bom dia» ao longo do dia. A Ana Chainho dizia «carafo» muitas vezes. O Luís inventava rimas por tudo e por nada com um talento invejável — chegou a escrever uma Demanda do Santo Graal com bolinha vermelha no canto e personagens um pouco diferentes do habitual — foi uma obra que se trocava clandestinamente na Avenida de Berna e em certas ruas de Teerão (conta a lenda). Ah, sim, além de tudo isso, entre os rapazes da minha turma havia uma piada que consistia na simples menção da expressão «por acaso» dita com uma certa entoação. 

Estranhas palavras, as nossas.

Enfim, a nossa língua era mais do que a língua portuguesa: era aquela que inventávamos entre nós, no correr dos dias, ao sol da velha esplanada da nossa faculdade, com os carros na avenida e os aviões a passar mesmo por cima das nossas cabeças.

* (O texto acima foi publicado no livro Doze Segredos da Língua Portuguesa, em 2016.)

** Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas na página Certas Palavras e fala sobre livros na Pilha de Livros. O seu mais recente livro é o Atlas Histórico da Escrita.