Foi no dia 24 de Dezembro de 1990. Tinha 6 anos. A consoada de Natal estava a decorrer como sempre, na cidade da Guarda, com a família toda reunida, muitos tios e primos, cerca de trinta pessoas no total. Depois de andar a contar os dias desde Setembro, chegara finalmente a época mais feliz do ano em que o cheiro da lareira andava no ar e, na sala dos meus avós, o pinheiro, natural, tapado quase até metade pelos embrulhos que tardavam em ser abertos, enchia a minha imaginação.

«Só à meia noite!», diziam os adultos enquanto eu e os meus primos tentávamos perceber, pela forma e peso, o interior dos que tinham o nosso nome escrito. Os presentes tinham remetente e não eram do Pai Natal: lá em casa, quem comprava as prendas eram os familiares e o Pai Natal era uma espécie de consultor ou advisor que transmitia o que lhe havíamos pedido por carta e dizia se nos tínhamos portado bem e merecíamos aquele castelo de LEGO ou se receberíamos um livro ou um pijama.

O Pai Natal aparecia sempre na noite de consoada e distribuía os presentes naquela que era a cerimónia de prémios mais importante do ano, para mim. Um a um, pegava nos embrulhos e lia o destinatário e o remetente. Soavam rufos na minha cabeça e quando o meu nome era dito, levantava-me como uma mola para ir buscar o presente. Envergonhado por estar na presença do Pai Natal, agradecia-lhe baixinho e a quem tinha comprado a prenda. Rasgava o papel com o entusiasmo que só temos em crianças e vislumbrava, finalmente, o interior da prenda. Com 6 anos, já sabia disfarçar quando não gostava de algo: «Gostaste?», perguntava uma das minhas tias e respondia-lhe «Sim…», sem a olhar nos olhos, ficando a pensar para que raio é que quereria uma carteira das Tartarugas Ninjas quando o que tinha pedido era o barco pirata da Playmobil ou um livro sobre dinossauros.

Não guardava rancor, pois era apenas uma de dez ou mais prendas que recebia, dada a quantidade de familiares que ali se juntavam. No entanto, comecei a pensar no que teria feito de errado nesse ano, sentindo-me culpado por estar a questionar a autoridade soberana do Pai Natal. Olhei para ele, de alto a baixo e estranhei estar mais magro do que o normal. Talvez a azáfama da época natalícia que o obrigava a percorrer tantas casas o tivesse feito emagrecer. A voz também era demasiado fina para um homem de barbas brancas – aliás, sempre estranhei que o Pai Natal fosse pai e não o Avô Natal – e foi nascendo em mim um sentimento de que algo estava errado.

Estava semeada a desconfiança. Comecei a congeminar um plano para tirar as minhas dúvidas e na vez seguinte em que o meu nome foi chamado, ao agradecer ao Pai Natal com dois beijinhos, puxei-lhe a barba. O choque! A barba era falsa e a cara de uma das minhas tias ficou exposta, deixando todos – ou talvez só eu – incrédulos. Não era o Pai Natal! De repente, tudo fez sentido na minha cabeça e as peças do puzzle que andava a montar há anos, finalmente, encaixaram-se: era óbvio que o Pai Natal não tinha capacidade de ir a todas as casas do mundo na mesma noite; era, agora, claro o porquê de ele falar português fluente; já sabia porque é que nunca se viam as renas estacionadas lá fora. Será que algum daqueles pais natal que haviam ido lá a casa nos anos anteriores era o verdadeiro? pensava, neste primeiro dos cinco estágios para a aceitação: a negação.

«O Pai Natal não existe!» gritei, numa espécie de momento Eureka! «Claro que existe.», diziam, «Hoje não pode foi vir.». Hum… não fiquei convencido. Não podia vir, não vinha e pronto, não mandava a minha tia transformar o Natal em Carnaval e mascarar-se e gozar com as pessoas, pensava agora no segundo estágio: a raiva.

Seguiu-se a negociação, prometendo a mim mesmo que me iria portar exemplarmente no próximo ano, só para ter a certeza que o Pai Natal não tinha deixado de nos visitar por minha culpa. Fui para o quarto, mergulhado na quarta fase do processo que é a depressão.

Pensei no porquê daquela mentira e se seria tudo uma cabala para me obrigar a portar bem durante o ano todo. Perguntei-me se tudo não passava de um plano maquiavélico e uma espécie de complot mundial da parentalidade. Depois de chorar tudo o que tinha a chorar, chegou, finalmente, a aceitação: o que interessava era que continuaria a receber os presentes e, melhor do que isso, as traquinices que fizesse pela calada sem os meus pais verem, não seriam vistas e anotadas pelo cabrão do cusco do Pai Natal. Ah. Ah. Ah. Melhor notícia de sempre!

Feliz Natal.

Sugestões e dicas de vida completamente imparciais:

O Coelho da Páscoa também é treta até porque os coelhos não põem ovos.

A Fada dos Dentes anda a fugir aos impostos e nunca declara as despesas dos dentes.

Se puxarem as barbas a Deus, vão ver que afinal também são falsas e ele não existe.

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