Provavelmente a maioria das pessoas que está a ler isto pouco contacto teve com o telefone de mesa que tinha um disco para marcar o número; e muitas não terão usado uma “máquina de escrever”, ou seja, um aparelho com teclas barulhentas que imprimiam directamente as letras numa folha de papel. Mas todas sabem com certeza o que é o dinheiro: aquelas notas e moedas que se guardam na carteira e se usam para comprar coisas e serviços.
O dinheiro, em termos institucionais, é uma convenção entre partes. Representa, muito vagamente, um valor que é reconhecido por todos e que serve de “moeda de troca” – a expressão já diz tudo: pode trocar-se dinheiro por alguma coisa. O aspecto que aqui interessa é o da convenção: o seu valor é acordado entre partes, de modo a poder comparar-se alhos e bugalhos pelo seu valor fiduciário. É muito mais fácil trocar um bife por uma bicicleta se tiverem um valor monetário; se não fosse assim, quantos bifes valeria o veículo?
Bem, esta convenção já existe há milhares de anos e o dinheiro teve muitos aspectos; em certas civilizações era representado por grãos de milho, noutras por sal e, no caso da nossa, por ouro. Durante séculos, para simplificar uma longa história, o ouro era a “moeda de troca” aceite por toda a gente. A partir de certa altura convencionou-se que, em vez do metal, se podia usar um pedaço de papel com a promessa de que poderia ser trocado por ouro. Depois, e aqui já estamos suficientemente próximos da actualidade para colocar datas, convencionou-se que esses pedaços de papel (as notas) já não poderiam ser convertidas em ouro. Em 1971, ficou decidido que as notas teriam o que se chama de “circulação forçada” – ou seja, não poderiam ser convertidas em ouro. Essa conversão tinha sido feita pelos bancos centrais de cada país e consagradas por um acordo entre todos eles. Portanto, embora as notas dissessem uma coisa do género “O Banco Central converterá este papel em tantos gramas de ouro”, na verdade a troca já não era possível.
Nesta altura existiam as notas propriamente ditas e outros papéis com valor de dinheiro – os cheques e as promissórias, por exemplo. Quer dizer, um cheque podia ser convertido em notas, mas as notas não podiam ser convertidas em nada, apenas usadas para pagar bens.
Essa situação sofreu outra alteração com o cartão de crédito; o primeiro, que tinha o nome de Charga-Plate, data de 1928 e foi substituído em 1950 pelo cartão American Express e em 1958 pelo Visa. O que é interessante notar é que a distância em relação a um padrão-ouro ficava maior. Ao usar o cartão, o pagador prometia que essa quantia seria posteriormente trocada por dinheiro, sem a necessidade de notas ou moedas.
Com a vulgarização da Internet surge outro modo de usar o dinheiro, a transferência bancária. Neste caso não há nenhum objecto físico, nem cartão nem notas. O dinheiro passa a ser, de facto, uma convenção abstracta.
Paralelamente, os cartões de crédito vão sendo substituídos por aplicações no telemóvel; já não é preciso mostrar o cartão, apenas mostrar uma imagem do ecrã do telemóvel para que se dê a transferência bancária. Recapitulando, a distância entre o ouro e o dinheiro – que realmente já não se pode chamar de dinheiro, no sentido material – é cada vez mais distante.
Para ver o estado em que estamos, basta prestar atenção a uma qualquer transacção comum: por exemplo, uma viagem de Uber. O utente português paga a uma central na Holanda, através de um débito (que pode ser processado pela Pay Pal, nos Estados Unidos), o qual desconta o valor no seu cartão de crédito, que mais tarde retirará esse valor da sua conta bancária, provisionada pelas transferências do seu patrão. O motorista do carro recebe um crédito na sua conta, com a qual poderá pagar com cartão Multibanco o supermercado, o qual adquire os seus produtos através de transferências bancárias. Quer dizer, a simples prestação de um serviço implica uma cascata quase interminável de movimentações virtuais em que não há dinheiro físico envolvido.
Porque é que estamos a explicar uma história que toda a gente sabe, como se fosse uma lição a uma criança de oito anos? Para compreender o “salto” seguinte, que é a criptomoeda.
Nasceu em 2009 – parece que foi ontem – com o nome de Bitcoin, inventada, possivelmente, por uma personagem misteriosa chamada Satoshi Nakamoto. A novidade é que este “dinheiro” não passa por bancos, privados ou estatais, nem por nenhuma instituição financeira. É um acordo entre duas partes, registado virtualmente num computador. Para poder funcionar sem uma entidade emissora, é necessário que o computador – na realidade, milhões de computadores, espalhados pelo mundo – registe a entrada da criptomoeda a crédito numa conta e a débito noutra. Não corresponde a nenhum bem de referência (onde já lá vai o ouro!) nem é controlada por nenhuma entidade agregadora.
Por ora, as criptomoedas têm uma circulação – se se pode falar de “circulação” – relativamente limitada em relação à moeda “clássica”, sobretudo por duas razões: a natural desconfiança das pessoas numa transação paga com bits digitais, e a óbvia recusa das instituições em aceitar uma circulação que lhes sai completamente fora do controlo.
Mas as criptomoedas movimentam quantias cada vez maiores e, passada a desconfiança inicial, já foram aceites por agentes de peso mundial, como Mark Zuckerberg e Elon Musk – o que levou a que as autoridades monetárias oficiais a considerar seriamente incluí-las no sistema financeiro internacional, sob pena de serem ultrapassadas pela prática e perderem o poder de controlo. O Banco de Inglaterra, entre outros, já anunciou que está a estudar seriamente o assunto.
O sistema requer, unicamente, uma actividade brutal da parte dos computadores – tão brutal que a electricidade consumida na contabilidade das transacções virtuais já é 0,5% da electricidade consumida mundalmente. Isto porque as transacções com estas moedas – já há várias “marcas” de bitcoins – envolvem algoritmos muito complexos, que exigem muito dos processadores computacionais.
Isto numa altura em que as criptomoedas ainda são usadas numa pequena percentagem de negócios – geralmente grandes negócios. Mas não custa imaginar que o uso das bitcoins espalhar-se-á para transacções mais pequenas e muito mais numerosas. Já é possível transaccionar equipamentos industriais, certos serviços, e até automóveis, com criptomoedas. Também é possível de prever que, num futuro não muito distante, poderemos pagar a conta do supermercado em bitcoins.
É abissal, a distância temporal e civilizacional entre o cidadão que ia à feira e pagava com pepitas de ouro da sua sacola, e o comprador de hoje, que usa o computador para adquirir um serviço qualquer.
É abissal, mas é um facto inegável. Neste Natal ainda não, mas no próximo talvez já presenteie os seus filhos com algumas bitcoins. Não havendo contacto físico, até é mais seguro, no terceiro ano da pandemia...
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