A ideia que tenho é a de que vivemos em mundos diferentes, eu, a minha família, os meus amigos, as pessoas com quem me cruzo todos os dias, e os políticos, pelos menos uma parte daqueles que ontem debateram o Estado da Nação na Assembleia da República.
Não vou repetir o que foi dito no Parlamento - o SAPO24 e o jornalista Pedro Soares Botelho fizeram um excelente resumo do que lá se passou, como poderá verificar aqui -, mas sim falar do que me deixou mais ou menos perplexa, mais ou menos preocupada com o que aí virá.
Aliás, grave, grave não é o que diz o primeiro-ministro, pelo contrário, é o que ele cala.
Sabe Deus com que habilidade, a António Costa só faltou dizer ipsis verbis que está tudo sob controlo. "Dispomos agora de condições únicas que nos permitem estar confiantes e acreditar que é possível ultrapassar esta crise", afirmou. Falou em "contas públicas sãs": "Quando o vírus nos atingiu tínhamos alcançado pela primeira vez um excedente orçamental e vínhamos em trajectória de redução da dívida pública. A taxa de juro da dívida pública já se encontra ao nível pré-Covid".
O que não diz é que a dívida pública era de cerca de 60% do PIB em 1995 e foi subindo paulatinamente até atingir perto de 120% no tempo de José Sócrates e assim ficou mesmo depois de o Estado empochar 30 pontos percentuais em receitas com as privatizações de uma série de empresas públicas. Com Programa de Ajustamento a dívida cresceu menos e no ano passado estava próxima dos 250 mil milhões de euros, para um PIB nominal de 212 mil milhões A.C. (antes do Covid). Graças à política do Banco Central Europeu as taxas de juros baixaram e o serviço da dívida baixou. Mas a dívida sobe e vai aumentar ainda mais - para 135% a 140% do PIB nominal no final deste ano, apesar de as taxas de juro continuarem a cair. Os números não são meus, são da Comissão Europeia. Não é a dívida que está controlada, é o custo da dívida. Por causa do BCE.
Costa anunciou ainda um "envelope financeiro sem precedentes": 57,9 mil milhões de euros até final de 2029, sem contar com linhas de crédito ou acesso a programas de gestão centralizada na Comissão Europeia. Isto são mais de 6,5 mil milhões de euros por ano a entrar no país, contra os habituais 2 mil a 3 mil milhões.
De acordo com dados do INE e do Banco de Portugal, o PIB está a cair (sobe per capita porque há menos população). No ano passado, Portugal estava em 21.° na UE, a dívida pública e privada tinha atingido níveis recorde (cada português devia cerca de 25 mil euros) e a carga fiscal é mais elevada de sempre: 35,4% do PIB.
Há 20 anos a Estónia tinha um terço do PIB per capita português. Portugal tem 20 anos de avanço na União Europeia, mas um PIB per capita mais baixo, porque a Estónia, num período de tempo curto, avançou de tal maneira que nos ultrapassou. Entre 2015 e 2019 todos os países da UE cresceram mais que Portugal, com excepção da Itália e da Grécia. Crescemos acima da média europeia mas estamos na cauda - e a média é influenciada pelos que crescem muito, como a Alemanha ou a França, que agora crescem menos.
Como é que Portugal é o 5.º país que mais fundos recebe per capita e é o antepenúltimo em termos de crescimento na Zona Euro?
António Costa acredita que esta a "oportunidade" para fazer uma "mudança estrutural" e "reforçar a autonomia estratégica" da economia portuguesa. Foi isso, diz, que o levou a fazer o "convite a António Costa Silva para elaborar um documento de visão" que está agora em discussão pública - o tal, que no debate João Cotrim de Figueiredo, da Iniciativa Liberal, viria a dizer mais parecer um catálogo: "Isto não é uma visão, é um delírio", afirmou.
Percebe-se o porquê. Da estupefacção de Cotrim de Figueiredo e de o documento dizer que Portugal precisa de tudo. Na verdade, se olharmos para trás e nos cingirmos à História, as últimas grandes obras e grandes projectos datam de há 50 anos: Alqueva, Aeroporto de Lisboa, Sines, electrificação dos caminhos-de-ferro, rede de auto-estradas, instituição de regalias sociais, criação de universidades e tanto mais. O país cresceu a taxas nunca mais vistas de 6% ao ano. Podia falar-se na importância da entrada de Portugal na EFTA, mas então o que dizer da adesão de Portugal à CEE? Também nessa altura houve documentos visionários, dos planos estratégicos de Michael Porter aos PIN - Projectos de Interesse Nacional (que é feito deles?).
Ontem de manhã, PS e PSD trocaram galhardetes, acusando-se mutuamente de terem parado no tempo, fossilizado, foi esta a palavra utilizada. E não perceberam o pior: é que é Portugal que não avança, pelo contrário, retrocede. O país fossilizou a muitos níveis e os culpados são eles.
António Costa queixou-se dos que fazem sempre a mesma pergunta: Como é que vamos vencer a crise? "Já ouvi isto em 2015, 2016 e 2017..." Pois é, senhor primeiro-ministro, quando ouvi o seu discurso e as respostas que deu no debate parlamentar também tive aquela sensação terrível de déjà vu.
P.S. - António Costa afirmou que há, "pelo menos", quatro outros domínios críticos em que "devemos procurar resiliência e procurar mitigar o impacto da pandemia". Um deles, "as carências habitacionais e precariedade de muitas relações laborais". Há (havia na altura) cerca de 100 mil precários no Estado. No Verão de 2017 fez-se uma lei que permitia a integração de cerca de 30 mil pessoas no Estado ao abrigo de um programa de regularização extraordinária dos vínculos precários na Administração Pública. Dessas, 10 mil foram vinculadas. E as outras?
P.P.S. - Percebo que António Costa tenha acabado com a "maçada" dos debates quinzenais, uma forma de calar a oposição, sobretudo os partidos mais pequenos, que de outra maneira mal aparecem na televisão. Já Rui Rio não deve ter medido bem o alcance da sua decisão de patrocinar o PS - talvez quando atingir a dimensão actual do CDS o compreenda. É o feitiço contra o feiticeiro.
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