Estamos no mês do Dia Internacional da Mulher; no dia 14 de março fez três anos que Marielle Franco foi assassinada. É altura de parar e pensar. No Dia Internacional da Mulher ainda existem mulheres que não se vêem representadas pelo feminismo, mulheres negras, mulheres trans, mulheres pobres, mulheres não heterossexuais, mulheres ciganas, migrantes… mulheres que se vêem ainda muitas vezes com obstáculos e questões de sobrevivência imediata por ultrapassar e que continuam a não se ver representadas por um feminismo que nem sempre tem em conta estas intersecções.

Trago o nome de Marielle Franco, exatamente por se tratar de um exemplo de uma mulher, vereadora, socióloga, ativista, feminista, negra, LGBT que foi morta a reivindicar direitos para as suas e os seus iguais, em 2018, num mundo que já se diria mais equilibrado na luta pela igualdade de género e em que noutros pontos do mundo mulheres são a cara e a voz das suas lutas, com altos cargos políticos e empresariais. Então, o que falta?

A história do feminismo remete-nos para a história de mulheres brancas de classe média que se depararam com a situação de subalternidade das mulheres e que procedem a uma longa luta pela reivindicação da sua posição na sociedade. Direitos como os já consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, deixavam de parte as necessidades das mulheres. Temos como exemplo, Mary Wollstonecraft com a reivindicação pelo direito à cidadania, conceito que deixaria de parte as mulheres, entre outras reivindicações como o acesso à remuneração e à ocupação de espaços até então apenas ocupados por homens.

Mas quando olhamos mais atentamente e de forma crítica para essa História, reparamos que essa luta não era comum a todas as mulheres. Mulheres pobres já trabalhavam, mulheres negras eram escravizadas, até para trabalharem em casa de quem estava na luta pelo direito à igualdade. Quando falamos do conceito de cidadania trazido anteriormente, falamos, por exemplo, no caso do colonialismo português, até meados de 1960, em que a pessoa negra “indígena” não era sequer considerada cidadã. As mulheres negras viam-se assim numa situação de subalternidade muito mais profunda e enraizada, até a um contexto ainda muito recente. As intersecções criadas pela cor da pele, a expressão de género a sexualidade, são níveis de discriminação que colocam as pessoas mais ou menos vulneráveis às violências que advêm dessas mesmas descriminações.

bell hooks é uma das autoras importantíssimas na crítica ao feminismo branco criado por mulheres privilegiadas e chama-nos à atenção de como este não só não teve em conta as intersecções na vida das mulheres como contribui para as oprimir. hooks (2015), enquanto mulher negra, relembra como o movimento feminista, criando um problema comum a todas as mulheres, pode colocar as opressões de classe e “raça” fora da equação, ajudando à sua legitimação. Este pensamento pode ser alargado às discriminações com base na expressão de género e orientação sexual. Ao não incluirmos no movimento as variadas opressões que variadas mulheres sofrem, estamos a contribuir para o apagamento das vozes dessas mulheres e das suas experiências.

Por outro lado, bell hooks, autora dos livros "Ain’t I a Woman? Black women and feminism" (1981) e "Feminist theory: from margin to center" (1984), relembra como, para além do movimento feminista na sua génese deixar de fora várias dimensões que caraterizam a vida das mulheres pelo mundo, foi formado em cima de uma estrutura extremamente racista e classicista que usufrui dos apagamentos anteriormente referidos. Isto é, não só o movimento negligencia as experiências de mulheres que não entrem no padrão da mulher branca, de classe média, universitária e de família tradicional, como bebe dessa opressão quando o seu objetivo é o de colocar mulheres brancas em lugares semelhantes ao de homens brancos. Assim, o movimento avançava e reivindicavam-se direitos à liberdade da mulher sem ter em conta a posição de outras mulheres que estavam longe de serem livres - “sem discutir quem seria chamado para cuidar dos filhos e manter a casa se mais mulheres como ela própria fossem libertadas do trabalho doméstico” (bell hooks, 2015).

Existem, sim, constrangimentos comuns a todas as mulheres, mas o feminismo tem de chegar às experiências de todas e não se moldar apenas pelas necessidades de quem está no topo da cadeia. É importante que exista um esforço, por parte de quem já está em patamares mais confortáveis da sua luta, graças às suas conquistas individuais e às suas vitórias frente aos obstáculos que o sistema patriarcal lhe criou, mas também graças aos privilégios que as outras dimensões da sociedade lhe oferecem, em dar as mãos aos movimentos e às mulheres que vêm atrás nesta corrida. É necessária a constante reflexão acerca desses lugares de privilégio e acerca das oportunidades que, mesmo quando filtradas pela sua condição enquanto mulher, são facilitadas pela pertença ao grupo racial que continua a ter a posição dominante numa sociedade intrinsecamente racista e/ou quando a sua posição face aos meios de produção é privilegiada.

“Eu faço-o não numa tentativa de diminuir a luta feminista, mas de enriquecer, de compartilhar o trabalho de construção de uma ideologia libertadora e de um movimento libertador” Bell Hooks, 2015

O feminismo tem de ser para todas as mulheres. Cabe a quem luta pelo movimento de igualdade de género lutar também contra as amarras que coagem as restantes mulheres, mesmo que não prejudiquem diretamente a sua luta quotidiana. O crescimento do movimento carece destas reflexões e intersecções e não só do ponto de vista superficial. O feminismo tem de ser ativamente antirracista, anticolonial, tem de lutar ativamente contra os constantes ataques à condição das mulheres trans e da sua posição dentro deste movimento. Cabe-nos entender, por exemplo, de que forma o feminismo com tendência a tornar-se extremamente carcerário aperta mais as amarras de quem luta contra o racismo e a violência contra pessoas migrantes. Um movimento com um objetivo verdadeiramente reestruturador tem de abanar e lutar por quebrar com as normais sociais como estas foram produzidas e reproduzidas.

Termino com a sugestão a todas as pessoas e a mim mesma, que se incluem no movimento feminista e que estão em algum lugar de privilégio, a procurarem conhecer teorias, pensadoras e coletivos que não falem só diretamente para as suas necessidades, mas que ajudem a construir uma visão e uma ação mais inclusiva e interseccional.

Apesar de Marielle Franco já não estar entre nós, o legado que ela deixa está muito presente e fortíssimo no Brasil através do Instituto Marielle Franco (@institutomariellefranco), autoras como bell hooks, Djamila Ribeiro e Grada Kilomba, continuam a oferecer-nos a possibilidade de pensar o feminismo e o quotidiano fora da perspetiva da mulher branca. Com esse enfoque, em Portugal, temos coletivos feministas como o INMUNE - Instituto da Mulher Negra em Portugal, o FemAfro, o Mulheres Negras Escurecidas (@mn.escurecidas), o espaço de conversas Together2Change (@together2changee). Ainda, a Plataforma Geni, plataforma de mulheres brasileiras migrantes (@plataformageni). Plataformas que se focam na visibilidade e luta pelos direitos de pessoas LGBTIQ+ como a TransMissão (@trans.missao) e a Rede Ex Aequo (@redeexaequo). Com enfoque na perspetiva de mulheres e pessoas ciganas, a Iniciativa Cigana (@Destaveznaoeumcravoeumacerveja). Associações e coletivos que se focam na luta pelos direitos humanos de mulheres e não só, com uma abordagem interseccional como associação Ação Pela Identidade (@apidentidade) e A Coletiva (@acoletiva) e a Brigada Estudantil (@brigadaestudantil). Estes são alguns entre tantos outros coletivos e agentes individuais, desde os mais conhecidos aos que vão surgindo na urgência destas questões e que são cada vez mais, cabe-nos a nós procurá-los e ouvi-los.