O meu primeiro encontro com Ursula K. Le Guin deu-se com o livro Feiticeiro Terramar e depois nunca mais parei. Aprendi imensas coisas com ela ao longo da vida. Sobre a forma de estar, sobre a escrita, sobre a importância dos dragões. Para mim, nunca foi uma autora de ficção científica, embora seja esse o rótulo no mercado dos livros e dos leitores. Sempre entendi que os seus livros eram reflexões sobre a vida e os relacionamentos. Reflectir é um dos bens maiores da Literatura e a razão pela qual acusamos a falta de pensamento prende-se com essa preguiça no exercício de ler e de pensar. Ler e interrogar, ler e entender, ler e incomodar. Agustina Bessa-Luís disse muitas vezes que escrevia para incomodar.

A autora norte-americana, casada com um francês, filha de antropólogos, mãe de três filhos, dispôs-se a fazer-nos pensar e construiu histórias que ficarão para sempre com quem as leu. Uma das suas leitoras, acredito que devota, será J.K. Rowling, a autora do famoso entendedor de serpentes, Harry Potter de ser nome. Se Ursula K. Le Guin bebeu em J.R.R.Tolkien, Rowling foi beber à obra de Ursula e sempre que me cruzo com Harry Potter penso em Gued, o Gavião de Terramar, ele que falava com dragões, a língua mais antiga do mundo. A autora afirmou: “Escreva o que deseja escrever. Adicione tantos dragões quanto quiser”.

Imaginar o possível, ou o impossível, para pensar a humanidade é um talento de génio que poucos possuem. E claro que ainda hoje se diz que H.G. Wells, autor da Guerra dos Mundos, é o pai da ficção científica. O pai parece importar sempre mais do que a mãe, vá-se lá saber porquê. Eu, que sou cansativamente feminista, pois torço por Mary Shelley e pelo seu Frankenstein. Coisas minhas, já se sabe.

Uma das facetas de Ursula K. Le Guin era o seu feminismo num mundo manifestamente dominado por homens. Ela dizia que não tinha gostado de ficção científica ou de fantasia imediatamente. O facto de a maioria das histórias terem como protagonistas homens bélicos com desejos de invadir ou conquistar algo pareceu-lhe redutor. Assim, como lhe pareceu redutor ser apenas mãe e esposa. “Não há motivo para que uma mulher casada com filhos não possa ser uma artista comprometida. (Isso parece evidente, mas não foi imediatamente claro para mim)”. E, assim, entendendo o universo ao seu redor e o domínio do patriarcado, a escritora tornou-se feminista acima de tudo, mesmo quando os personagens centrais das suas histórias eram do sexo masculino. “Os valores do patriarcado estão enterrados em muitos dos enredos das nossas histórias. São necessários novos enredos”.

Frontal. Bem-disposta, capaz de se manter num certo anonimato para preservar a sua vida privada, Ursula K. Le Guin foi convidada para a Academia de Letras Americana em 2017 e terá, de acordo com declarações suas, perdido ou deitado a carta para o lixo. Meses depois da formulação do convite, sem resposta, a Academia decidiu interrogar a agente da escritora e é assim que fica a saber do convite. Escreve a agradecer e a aceitar, dizendo que não recebeu nada por escrito, não “estava a dar numa de Dylan”, aludindo ao silêncio de Bob Dylan à Academia Sueca aquando do Nobel da Literatura. O seu sentido de humor pode ser apurado em alguns vídeos na internet. Os livros, a sua maioria não está traduzida para português, são procurados pelo mundo inteiro. Não apenas a ficção, mas também a poesia, a literatura infantil e, claro, o guia para escritores. O mesmo livro onde afirma que ler é mais importante do que qualquer outra coisa e, por isso, os outros escritores não são concorrência, são sustento. É aí também que se pode ler que o arrependimento faz parte do crescimento enquanto escritor e que corrigir é bom, mesmo que os erros anteriores sejam eternos e possam estar a um “Google de distância. Não há nada vergonhoso em se tornar uma pessoa melhor, uma pessoa mais sábia”.

Morreu Ursula K. Le Guin. Ela que estudou o taoismo e o budismo, na busca permanente de equilíbrio, e que teimava na ideia de que o trabalho diário era o mais importante porque, afinal, “a imortalidade nunca funcionou bem para ninguém”, acrescentando: “Evite isso a todo custo”. Não creio que tenha conseguido atingir este objectivo. Quem leu os seus livros irá passá-los a outros e, de geração em geração, a escritora será única e, portanto, imortal.