Queria muito ver este "Guião para um país possível”, de Sara Barros Leitão. Entrevistei a autora e encenadora no momento da estreia e, desde essa altura, a sinopse da peça parecia algo irresistível. Esteve em cena em Lisboa em abril, no Teatro do Bairro Alto, completamente esgotado, e só me consegui cruzar com ela no Cineteatro Louletano, em Loulé, já em maio.

Expectativas no máximo talvez seja algo que não se deva ter quando se vai ver uma peça, mas tinha-as. Daquilo que já sabia, trata-se de uma interpretação de dois atores, que se baseia nos registos das transcrições dos debates da Assembleia da República desde 1975. Como me explicou na altura a autora da peça e encenadora, estes registos são particularmente notáveis porque são semelhantes a didascálias, com espaço para aplausos, protestos e apartes.

A peça começa nesta premissa, com humor associado à interpretação dos dois atores, mostrando os diálogos que muitas vezes o espectador comum não ouve na Assembleia da República, bem como o papel essencial daqueles que os registam diariamente. O texto começa depois a mostrar acontecimentos marcantes desta mesma assembleia, desde a celebração dos 49 anos do 25 de Abril até à Assembleia Constituinte numa ordem cronológica do mais recente para o mais antigo.

A minha principal crítica nesta peça é ao facto de ter considerado a ideia verdadeiramente interessante, caso tivesse sido explorada de outra forma. Isto começa desde logo nos momentos da história da Assembleia que são selecionados para aparecer em palco. Como se a história da democracia portuguesa se escrevesse com uma visão apenas de esquerda, esta é priorizada e glorificada durante toda a peça. Enquanto isso, as posições de direita são, na sua maioria, omitidas ou descontextualizadas, numa espécie de tentativa de fazer parecer ridículas as suas ideias ou de um conservadorismo bacoco que não se observa em todas as bancadas associadas a partidos de direita atualmente.

Além disso, episódios marcantes dos anos mais recentes da democracia são totalmente esquecidos, como a legislatura de José Sócrates, e é passada a ideia que a culpa da última chegada do FMI a Portugal é, afinal, do governo de Pedro Passos Coelho. Adicionalmente, partidos como o Bloco de Esquerda, que elege desde 1999, e que é apoiado pela encenadora, não são mencionados.

O PAN, por exemplo, aparece apenas com uma das intervenções mais caricatas do, na altura, recém-deputado André Silva.

De resto, existe uma glorificação do Partido Socialista (PS) e dos deputados e governantes a ele associados ao longo dos anos, sendo esquecidas outras grandes figuras. A título de exemplo, nomes como Sá Carneiro e Álvaro Cunhal não existem nesta viagem pela democracia portuguesa.

Há uma breve glorificação do Partido Comunista Português, com o discurso final da antiga deputada Odete Santos, mas pouco. A peça é sobretudo Partido Socialista e as suas batalhas, algumas perdidas, culpa da direita, na narrativa da peça.

Existe também um breve momento de homenagem a Natália Correia, ligada tanto à história do PS como do PPD, que viria a ser o PSD, mas é mais um momento de humor relacionado com a sua personalidade característica do que propriamente um momento glorificante do caráter da referência da escrita, dramaturgia e poesia.

Assim, só posso concluir que este é o guião para um país que possivelmente não é bem assim, no sentido em que quem escreve este texto esquece todo o discurso democrático que vai muito além do centrismo representado pelo PS.

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Há ainda uma crítica agressiva ao Chega, um partido que entra na Assembleia ao mesmo tempo que outros dois, o Iniciativa Liberal e o Livre, este último com uma deputada bastante icónica, Joacine Katar Moreira, e que nunca são mencionados. Já o partido de André Ventura, esse tem um protagonismo na abertura da peça em palco.

Por fim, a peça dá destaque a temas mais recentes, como deputados que ainda estão presentes no parlamento ou assuntos discutidos recentemente em plenário. Sendo uma peça que pretende celebrar também os 50 anos do 25 de abril, peca pela oportunidade perdida de não investir mais em recordar acontecimentos de um passado mais próximo do início do processo democrático.

Apesar disto, noto que, para uma peça que já esteve em mais de 12 palcos e irá estar em mais alguns, o cenário é bastante original. Cadeiras empilhadas numa forma artística, mudanças de guarda-roupa a acontecer em cena e muito movimento proporcionado por púlpitos que se transformam de forma diferente ao longo da interpretação, oferecendo momentos de humor e cenários mais dinâmicos.

Para uma peça que se passa sempre no mesmo lugar, os efeitos de luz e de som oferecem ao espectador uma experiência de constante movimento em cenas diferentes que não tornam o espetáculo maçador.

Os dois atores em palco, João Melo e Margarida Carvalho, fazem também uma interpretação extraordinária, alterando entre personagens, géneros, cores políticas e cargos ao longo da peça. No geral, a peça é uma ideia excelente, que a ser melhor executada teria sido uma obra de arte extraordinária. Faltou despir a capa da esquerda e preferir a capa da democracia que é afinal o que acontece naquele parlamento independentemente da cor política que o domina.

Pode rever a entrevista de Sara Barros Leitão sobre esta peça ao SAPO24 aqui e saber onde o "Guião para um país possível” irá estar nos próximos meses aqui.