Primeiro, umas explicações técnicas simples, para se perceber a questão. O urânio necessário para produzir uma bomba atómica - o chamado “weapon’s grade” - têm de ter 90% de pureza. Para o urânio de uso civil basta uma pureza de 60%. O “enriquecimento” (a palavra certa para purificação) do mineral é feito por centrifugação, um processo lento e de larga escala, em que se usam milhares de centrifugadoras em cadeia. Obter as centrifugadoras legalmente no mercado internacional é impossível e fabricá-las domesticamente exige alta tecnologia, mas o Irão já ultrapassou essa necessidade há muito tempo. Actualmente tem 2782 unidades em Natanz (uma central que Israel bombardeou em 2020) e 7110 em Fordow.

Agora, o historial. Segundo o tratado assinado em 2015 entre o Irão e um grupo de países (Estados Unidos, Reino Unido, Federação Russa, França, China, Alemanha e União Europeia), o país comprometeu-se a não enriquecer urânio acima dos 60%, a troco da liberação de certas importações essenciais, como medicamentos e componentes electrónicos. O controle é feito oficialmente pela Agência Internacional (AIEN) e subrepticiamente por Israel. O interesse de Israel é compreensível; bastaria uma única bomba atómica, lançada a minutos de distância, para destruir o país inteiro.

O acordo funcionou até 2018, quando o Presidente Trump desligou os Estados Unidos do compromisso, alegando que o Irão não estava a cumprir a sua parte (o que não foi confirmado pela AIEN na altura). Os outros países signatários continuaram a considerá-lo válido, mas Teerão achou que a saída dos americanos anulava a sua obrigação. Seguiu-se, até hoje, uma série complicada de voltas e contra-voltas, em que os iranianos ora aceitavam ora recusavam as visitas dos inspectores da AIEN enquanto, obviamente, ultrapassavam a fronteira dos 60%. Mais pragmáticos - por necessidade obvia - os israelitas usam a sua rede de espionagem para seguir a indústria nuclear iraniana e, quando acham que ultrapassou certos limites, atacam. Além do bombardeamento do reactor de Osirak, em 1981 (ainda antes do acordo),e da central de Naranz, em 2021 assassinaram o cientista-chefe do programa iraniano, numa operação sensacional.

Já em 1975 o então primeiro-ministro Yitzhak Rabin tinha avisado que Israel nunca permitiria uma bomba atómica iraniana, e em 2018, num famoso discurso nas Nações Unidas, Benjamin Netanyahu estabeleceu qual era a “linha vermelha” nuclear que o Irão não poderia ultrapassar.

Finalmente, os acontecimentos recentes. Desde que tomou posse, o Presidente Biden declarou que quer voltar ao acordo cancelado pelo seu antecessor, mas a situação entretanto complicou-se, com o apoio que Teerão tem dado aos russos na invasão da Ucrânia e o clima de quase insurreição instalado no país por causa dos direitos das mulheres. Agora, a AEIN anunciou que o Irão já chegou aos 84% de enriquecimento do urânio, a uns meros 6% da dosagem fatal.

Como de costume nestas andanças internacionais, as posturas dividem-se. Os europeus, sempre diplomáticos e incapazes de agir, dizem que se trata de um “desenvolvimento sem precedente e extremamente grave”. O Reino Unido, França e Alemanha querem censurar formalmente o Irão, e a assembleia geral da IAEA passou uma resolução condenatória, a dizer que vai levar o assunto ao Conselho de Segurança das Nações Unidas. Mas os Estados Unidos querem esperar por uma inspecção da agência que deve ter começado na quinta-feira.

Os Estados Unidos e os outros países nucleares ocidentais estão perante uma situação cada vez mais complicada; não é só o Irão que quer entrar no restrito clube da potências nucleares. A Rússia abandonou o tratado de não-proliferação, a Coreia do Norte continua com o seu programa de criar uma ameaça nuclear de longa distância (a distância entre eles e a Califórnia, mais concretamente) e o Pentágono informou o Congresso de que a China já tenha mais ogivas do que os americanos.

É preciso salientar que o Irão já tem mais urânio a 60% do que qualquer outro país sem armas nucleares, e que centrifugar de 60% para 90% pode levar apenas algumas semanas - muito menos tempo do que leva os ocidentais a entenderem-se se fazem alguma coisa e ainda menos do que façam o que decidirem. Aliás, qualquer decisão será sempre na forma de sanções que levam meses a produzir efeito...

E convém destacar que Teerão teve a lata de dizer que chegou aos 84% por acidente. Deve ter sido algumas centrifugadoras que aceleraram sem querer, ou coisa assim.

Devemos ficar assustados? Não, não devemos. Os israelitas, então agora, que são governados por um executivo radical-sionista, e que sempre tiveram os melhores serviços de espionagem do mundo, não hesitarão fazer alguma coisa mais prática e directa. A linha vermelha que Netanyahu marcou em 2018 ainda vale, e por acaso ele até está outra vez no poder.

Agora, que o mundo está a caminho dum novo susto nuclear, parece evidente. Depois da pandemia e da guerra, era só o que nos faltava.