“Zuca”, fiquei a saber, quer dizer “brasileiro” – o equivalente ao diminutivo “tuga”, muito utilizado por nós para nos classificarmos depreciativamente.
A “instalação” causou imediatas reacções, e uma hora depois a Reitoria da Faculdade já a tinha retirado. Ficou a saber-se que se tratava de uma piadola dum pequeno grupo de estudantes que se auto-denomina Tertúlia Libertas, e se dedica a sátiras de humor estudantil, mais chocantes do que finas. Para dar um exemplo das suas actividades, quando Passos Coelho, na altura Primeiro-ministro, foi fazer uma conferência à Faculdade, andaram pelos corredores com um coelho morto espetado num bastão. Publicam irregularmente um jornal, “O Berro”, que goza com toda a gente, professores, auxiliares e alunos.
Apesar da aparição ser breve, chocou os estudantes brasileiros, que constituem 22% dos alunos da Faculdade. A foto e a notícia do “acontecimento” espalharam-se rapidamente pelas redes sociais e chegaram aos jornais, brasileiros e portugueses. Alguns estudantes brasileiros queixaram-se imediatamente e a Reitoria, além de mandar retirar a peça, emitiu um comunicado a dizer que “não tolera quaisquer acções ofensivas relativamente aos nossos alunos”. Posteriormente enviou uma carta assinada pelo reitor, Pedro Romano Martins, ao Embaixador do Brasil em Lisboa, Luiz Alberto Figueiredo Machado, explicando que a atitude do Tertúlia Libertas “não representa o sentimento generalizado da comunidade académica, porquanto brasileiros e estudantes oriundos de diferentes países têm sido e continuarão a ser muito bem-vindos nesta instituição”.
Quando a peça chegou às redes sociais, já não estava lá. Mesmo assim, alguns estudantes brasileiros organizaram uma manifestação de protesto na quinta-feira seguinte, 2 de Maio, onde também estiveram presentes alunos portugueses. E os jornais diários de Lisboa deram a notícia, assim como, no Brasil, “O Globo”.
Tratou-se, portanto, daquilo que o norte-americano Daniel Boorstin em 1962 já classificava como “pseudo-evento”. O termo define situações que não têm grande dimensão, mas que são amplificadas na comunicação, acabando por tomar uma importância muito maior do que merecem. Antes que se perceba que o “acontecimento” praticamente não aconteceu, já adquiriu proporções monstruosas e passa de facto a ter importância – quer dizer, provoca consequências muito superiores ao seu valor. Escusado será dizer que com as redes sociais, que não existiam em 1962, este fenómeno atingiu proporções colossais.
Até mesmo os comentários contrários contribuem para a generalização da “notícia”. Veja-se, por exemplo, um post no Facebook: “Se estes alunos de Direito são os advogados de futuro, que Deus nos salve. E alguém que me explique, por favor, os processos de admissão a este curso quando são claros como a água os princípios, a má formação pessoal e cívica de quem fez tal cartaz.” Nos comentários ao post, muita gente perguntava qual era o assunto, e outros comentários explicavam-no. Assim, por bem ou por mal, um acontecimento infeliz mas mínimo espalha-se como a peste. No dia seguinte, os estudantes portugueses da Faculdade do Porto fizeram outro cartaz com flores para dar aos colegas brasileiros, a tornar pública a sua solidariedade.
O assunto está morto e enterrado, mas é uma boa oportunidade para perceber o que se passa com os processos de admissão que estão precisamente na origem desta piadola de mau gosto. Há duas situações que favorecem os brasileiros que pretendem fazer o Mestrado em Portugal. A primeira é que as notas que trazem do Brasil são mais altas do que as praticadas na Faculdade de Lisboa, colocando os candidatos brasileiros logo na frente dos portugueses. A segunda é a diferença da altura do ano em que as formaturas terminam: os brasileiros acabam primeiro, em Março e Abril, quando os portugueses só terminam a licenciatura em Junho e Julho, logo só podem candidatar-se mais tarde a vagas sempre insuficientes.
Esta situação foi reconhecida por Paula Vaz Freire, subdirectora da Faculdade: “A tensão surgiu no ano passado, quando reformulámos o regulamento de entrada no Mestrado e o momento da candidatura. Além disso, as notas nunca são muito elevadas aqui na Faculdade, faz parte da cultura da casa.”
O resultado é que este ano 60% dos alunos de Mestrado em Direito e Ciências Jurídicas são brasileiros. A subdirectora garante que está a estudar o assunto de modo a conseguir oportunidades equitativas para todos.
Embora o não-evento não tenha sido mais do que uma nota de rodapé na animada vida social da Faculdade, é natural que os brasileiros se tenham indignado. Sentiram-se rejeitados pelo facto de serem brasileiros, não por terem condições favoráveis nas admissões ao mestrado; falei com dois ou três que nem tinham percebido que essa vantagem existia.
O que traz uma questão de que ninguém gosta de falar, o tal elefante na sala: existe uma atitude de xenofobia entre portugueses e brasileiros?
Durante os anos, houve mudanças substanciais na imigração duns e doutros. No caso do Brasil, desde a independência, em 1822, que a imigração portuguesa não parou de crescer, calculando-se (não há estatísticas fiáveis) que entre 1904 e 1915 entraram no Brasil cerca de 430 mil. Quase meio milhão, num país que em 1911 tinha cerca de seis milhões de habitantes.
Os que emigravam eram muito pobres e sem escolaridade, empurrados tanto pela fome como pela esperança. Não surpreende que fossem percebidos como ingénuos e até pouco inteligentes. Daí as conhecidas “piadas do português”, que terão aparecido no final do século XIX e ainda se mantêm.
Na segunda metade do século XX, os portugueses começaram a preferir a Europa ou a ser convencidos a ir para África, pelo que a imigração no Brasil praticamente parou.
Mas com a Revolução do 25 de Abril, houve uma mudança substancial na quantidade e qualidade dos nossos emigrantes. Não terão sido mais do que uma ou duas dezenas de milhares (não há números, por desinteresse ou propósito), mas eram educados, com alto nível de vida, proprietários ou profissionais de alto escalão. Nos meios ricos e cultos, sobretudo no Rio de Janeiro e em São Paulo, mudaram a percepção que havia do “Joaquim e Manuel”.
Em Portugal aconteceu uma situação semelhante, em períodos diferentes. A primeira imigração brasileira em números notáveis deu-se com a crise, entre 1995 e 2000. Também eram pessoas muito simples, vindas regiões pouco desenvolvidas, que aceitavam os trabalhos que nós já não queríamos fazer. Algumas mulheres dedicaram-se à prostituição como último recurso e houve um aumento notável do crime violento no Brasil, com alta tensão e armamento. (A excepção que confirma a regra foi com os publicitários; vieram alguns muito bons, que fizeram a publicidade e a propaganda ganhar novos métodos e melhor estética.)
Em 2010 a crise bateu forte em Portugal e esbateu-se no Brasil. Uma parte destes imigrantes, que não se tinha verdadeiramente integrado, voltou para lá. Nos últimos anos, dá-se uma mudança como a que aconteceu com os portugueses: é a classe alta que quer viver em Portugal, desgostosa com as reviravoltas da economia brasileira. A nossa lei dá nacionalidade a quem tenha um bisavô luso. Hoje disputam os melhores apartamentos de Lisboa e têm lugares empresariais de relevo, ou investem nos seus próprios negócios. A paz nas ruas e o clima ameno encanta-os. Também nas nossas cidades a percepção do que é ser brasileiro mudou.
Esta é a história da imigração; não inclui a psicologia e a sociologia, que são áreas que só se podem pegar com pinças, por causa das sensibilidades politicamente correctas.
Há uma diferença muito marcante entre a personalidade dos portugueses, que são sisudos e convencionais, e os brasileiros, que têm humor e gostam da informalidade. Daí que a xenofobia no Brasil seja a tal “piada do português”, sempre contada ao próprio português com um sorriso, sem maldade. Em Portugal, manifesta-se mais por um afastamento discreto, sem abrir espaço, ignorando.
Há xenofobia? Há, sempre. Mas é, em ambos os casos, uma forma “soft” que só incomoda os hipersensíveis. O autor destas linhas viveu um total de dez anos no Brasil e nunca sentiu qualquer hostilidade. Apenas o sentido de humor que, como também o tenho, não me incomodava. Aliás, o Brasil é o único país que conheço, entre muitos, onde até árabes e judeus se dão bem! O “jeitinho brasileiro”, uma leveza que leva a ver o lado divertido das situações mais sisudas, faz com que etnias inimigas no mundo inteiro lá possam viver sem confronto.
Onde há racismo, ou xenofobia, ou como lhe queiram chamar, não é em relação à etnia, mas à conta bancária.
A diferença que vale é o dinheiro. Os ricos desprezam os pobres e os pobres, amiúde, respondem a tiro. Enquanto a maior agressividade em Portugal ocorre dentro da família e relações próximas (verdade!), no Brasil é entre os que nada têm e os que têm alguma coisa. Violência de rua, com armas automáticas.
Em Portugal, a xenofobia é surda-muda e também está relacionada com dinheiro, mas de outro modo. Quando a economia está em alta, os brasileiros são bem recebidos; quando há falta de emprego, são vistos como estrangeiros.
Falei com alguns brasileiros que vivem em Portugal, com experiências muito variadas. Um, empresário, está em Lisboa há 30 anos. Outro, médico, faz uns três anos. Uma outra, luso-brasileira, viveu por cá dez anos. Uma outra, advogada e escritora, casou com um empresário português e vive entre cá e lá. Todos têm sotaque. E todos concordam que nunca se sentiram hostilizados. Algum inuendo no tom da pergunta “Você é brasileiro?” e pouco mais. A única coisa que baixa a aceitação é a concorrência no trabalho ou nos negócios. Mas também é assim entre os locais: os de Lisboa acham os do Porto uns parolos e os portuenses classificam os lisboetas como “mouros” arrogantes.
Resumindo, na Faculdade de Direito não aconteceu nada. Mas é uma oportunidade de falar de coisas que ninguém gosta de abordar.
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