Estamos há uma semana a explorar pontos diários de atrito com o Brasil. O pretexto é a posição controversa da diplomacia brasileira sobre a Ucrânia. Deixámos de querer ser amigos de quem tem uma posição diferente da nossa?
No essencial, ou seja, a condenação da invasão russa da Ucrânia, Portugal e Brasil estão de acordo e já o expressaram na ONU. Há divergência sobre o modo de conseguir o fim da guerra. É assunto para ser conversado, negociado, é o papel da diplomacia. Discórdia não implica zanga.
É sabido que a posição diplomática do Brasil é diferente da do bloco NATO. Lula e o principal conselheiro diplomático, o ex-ministro Celso Amorim, defendem o posicionamento político-diplomático alternativo ao dos dois blocos em confronto, Rússia e NATO. A intenção de base dos países líderes do hemisfério Sul parecia ser a de equidistância. A Índia, que cultiva ser ponte geopolítica equidistante de todas as partes, alinha com o Brasil nesta ideia de bloco do hemisfério Sul, envolvendo (com menor peso) a África do Sul e (como superpotência) a China.
A viagem de Lula a Pequim introduziu uma deriva no posicionamento anterior: afastou-se da equidistância, juntou-se à China num alinhamento mais distanciado do bloco NATO, portanto, mais tolerante com a Rússia de Putin. Este desvio de Lula no discurso gerou turbulência na área NATO e Lula veio a emendar o que tinha dito. Permaneceu alguma ambiguidade. Talvez a possa desfazer nos discursos em Lisboa.
Mas esta volubilidade no discurso foi dramatizada em Portugal como em nenhum outro país, nesta fase em que tudo serve para atirar lenha que mantenha a chama do fogo político doméstico.
Esta febre nas críticas a Lula tem como resultado estar a servir para criar uma atmosfera capaz de substituir o abraço luso-brasileiro por manifestações de hostilidade na visita a Portugal do mais alto representante do Brasil.
Não haja dúvidas: Lula é, agora, goste-se ou não, o máximo representante do Brasil. Tal como, antes, Bolsonaro e Dilma. Com uma diferença: nenhum destes dois alguma vez mostrou algum carinho por Portugal. Mas, com Lula, como antes com Fernando Henrique e com Sarney, foi sempre evidente esse afeto por Portugal. Lula, em julho de 2003, quando esteve em primeira visita de Estado a Portugal comentou, numa varanda do Ritz voltada para o Parque Eduardo VII, ainda no recato do microfone fechado antes de uma entrevista: “Estamos a sentir fundo como somos povos irmãos”. Depois, na entrevista para a Antena 1, repetiria referências ao “carinho”. Uns meses antes, já me tinha calhado entrevistar brevemente Lula em São Paulo, a seguir à primeira eleição presidencial, e logo ali foi tocante, não apenas o carinho por Portugal como o conhecimento sobre a evolução portuguesa depois do 25 de Abril de 74. Falou do papel de Mário Soares na defesa da democracia (e, acrescentou, no impulso à CPLP), de Guterres, de Cavaco e de Jorge Sampaio.
No final do ano passado, antes ainda de tomar posse como presidente, a primeira viagem de Lula como presidente eleito foi para intervir na COP-27 em Sharm-el-Sheik – com garantias sobre a preservação da Amazónia como jóia imensa da natureza – e, logo a seguir, dois dias em Portugal.
A visita, agora, de Lula a Portugal, com tantos gestos marcantes, como o da entrega do Prémio Camões a Chico Buarque, é uma bela oportunidade para celebração do afeto entre portugueses e brasileiros.
Nós amamos o Brasil – talvez com mais carinho pelos brasileiros do que o dos brasileiros pelos portugueses. Não importa. Pode ser efeito do menos conhecimento do Brasil sobre Portugal.
O Brasil ajudou Portugal a ser mais livre. É esse o efeito que a primeira telenovela, a Gabriela, e outras que se seguiram, tiveram sobre nichos da sociedade portuguesa, nos anos 70 e 80. Sucessivas gerações de futebolistas brasileiros acrescentaram samba que tornou mais sedutor o futebol de equipas de clube e seleções portuguesas. O português do Brasil enriquece a língua portuguesa. A literatura vai mais longe com gente como João Guimarães Rosa e outros grandes escritores do Brasil. Adoramos escutar Elis Regina e Tom Jobim, Vinicius e Baden Powell, Caetano e Bethânia, o enorme Chico Buarque e todos eles.
Gostamos de celebrar os triunfos do Brasil – volto ao futebol: houve um tempo (exceto em Inglaterra 66, quando tínhamos Eusébio, Coluna, Simões, Hilário e os outros) em que os portugueses não podiam sequer sonhar com o pódio do Mundial, era evidente que a maioria de nós puxava pelo “escrete canarinho” de Pelé, Tostão, Sócrates, Garrinha e outros astros.
Mas, agora, estamos nesta quezília. Faz todo o sentido que a visita de Lula, em dias de festa e júbilo – coincidem com o 25 de Abril –, seja também de celebração do carinho luso-brasileiro.
Por mais zonas de divergência com Lula há que reconhecer o relevante desempenho de Lula na presidência do Brasil. Este, atual, é o terceiro governo de Lula. Os governos Lula 1 e 2 (2003/2010) deram acesso a mais de 20 milhões de brasileiros ao mercado de produtos básicos: comidinha para o “café da manhã”, o almoço e o jantar, puderam comprar frigorífico e um aparelho de televisão. Saíram da pobreza e fome de morte. Ficou gerado um ciclo virtuoso que impulsionou o crescimento económico. O investimento privado no Brasil dos anos Lula cresceu na média de 12% ao ano, duplicando o investimento público. Esse tempo dos governos Lula 1 e 2 beneficiou do superciclo de alta do valor de matérias primas, como o petróleo, a soja, o café e o ferro. Foi um tempo de grande avanço de conquistas sociais e laborais.
O colapso, arrastado por causas várias, entre elas a corrupção, veio depois, já no governo Dilma que não aguentou pressões várias, designadamente mediáticas, e cometeu o hara-kiri de contraproducentes políticas de austeridade e grande quebra do investimento público.
A classe média passou a estar furiosa com as políticas do PT que levaram à subida de preços e baixa do poder de compra. Instalou-se, radicalizada, a vaga anti-PT traduzida em ataques a Dilma e a Lula, visto como o ideólogo. Dilma foi destituída, Lula foi preso. Entrou Bolsonaro.
A justiça constatou o erro judiciário que levou à condenação de Lula. O povo brasileiro voltou a elegê-lo.
O presidente que está em visita a Portugal é o representante de todos os brasileiros, mesmo os que não gostam dele.
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