Não estamos em época para apontar responsabilidades e até culpados por má gestão desta emergência, o que importa é mobilizar o esforço de toda a gente para nos livrarmos o mais depressa e o melhor possível desta calamidade, mas há lições que desde já podemos aprender. Uma, a principal: se houvesse liberdade de informação na China, se o elaborado sistema chinês de censura eletrónica não tivesse ocultado e reprimido alertas ao longo de duas semanas, provavelmente a população de Wuhan teria evitado muito do contágio e a pandemia poderia não estar tão devastadora.
Em 30 de dezembro passado, a médica Ai Fen, diretora do serviço de urgência do Hospital Central de Wuhan, transmitiu através do WeChat (muito utilizado correspondente chinês ao Twitter), em alerta, o relatório sobre o estado de um doente em grave crise respiratória semelhante ao SARS, infeção respiratória que tinha sido grave crise sanitária em 2002/3. Ela partilhou com oito colegas médicos, entre eles o amigo oftalmologista Li Wenliang, através do sistema fechado de mensagens do WeChat, o relatório clínico sobre o caso que intrigava e que imediatamente parecia ser uma nova vaga da Síndrome Aguda Respiratória Severa (SARS).
Li Wenliang de imediato replicou a mensagem, com chamadas de atenção para a preocupação que o caso suscitava. A meio da noite do dia em que divulgou o alerta, Li foi chamado pela autoridade sanitária de Wuhan, que quis explicações sobre o que ele tinha publicado. Quatro dias depois, em 3 de janeiro, a polícia acusou Li e outros sete colegas médicos do crime de “propagação de falsos rumores”.
É facto que, logo em 31 de dezembro, a autoridade sanitária da China tinha reportado à Organização Mundial de Saúde a ocorrência de um caso que parecia ser novo episódio de SARS. Mas, ao mesmo tempo, o poder do regime chinês obrigou a rede WeChat, que tem o espantoso número de mil milhões de contas de utilizadores, a censurar várias palavras e siglas associadas à SARS e a infeções pulmonares ou epidemias.
Sem essa censura na rede WeChat, os jornalistas, designadamente os muitos correspondentes estrangeiros na China, poderiam ter noticiado o caso e, assim, desencadeado o sistema global de cautelas.
O alerta que Li Wenliang replicou ainda em 30 de dezembro foi apanhado por investigadores em diferentes laboratórios de pesquisa na China. Um deles, o Centro de Saúde Pública de Xangai, onde a equipa do professor Zhang Yongzhen, a partir dos dados que recebeu, conseguiu, em 5 de janeiro, sequenciar o genoma do tal vírus que ainda não estava batizado, mas que começava a ficar identificado como novo coronavirus.
Cumpridor das regras do sistema vigente na China, Zhang comunicou de imediato, com chamadas para urgência de atenção, os resultados do progresso da equipa que lidera apenas à cadeia hierárquica acima. Esperava que a informação fosse prontamente retransmitida, com os alertas para a gravidade do perigo constatado através da deteção do novo vírus, reconhecidamente causador de gravíssimos danos na cadeia respiratória humana. Nada aconteceu e, assim, em 11 de janeiro, a equipa de Zhang optou por publicar, em rede aberta não controlada pelo regime chinês, todos os dados de que dispunha. No dia seguinte, a polícia estava no Centro de Saúde Pública de Xangai, e fechou tudo.
Se as autoridades sanitárias do regime chinês tivessem decidido, logo em 5 de janeiro, partilhar a sequência do genoma deste vírus, elaborada pelos investigadores de Xangai, é indiscutível que a comunidade cientifica global teria ganho tempo precioso para desencadear pesquisas e, em emergência, declarar alerto internacional reforçado. Se as autoridades chinesas não tivessem imposto censura férrea às revelações sobre o novo coronavirus, ao mesmo tempo que a comunidade científica global anteciparia o desenvolvimento de investigações, o jornalismo poderia ter alertado o mundo para o alto risco da epidemia que estava a crescer a partir da China central.
Em 7 de fevereiro, Li Wenliang viria a falecer, contaminado por este novo coronavirus que tinha passado a analisar. Ele é um herói no alerta para este vírus que se tornou calamidade. O regime chinês que, 35 dias antes, o tinha castigado por “propagar falsos rumores”, reabilitou-o e começou a homenageá-lo.
Os factos evidenciam que, se a China não fosse um regime onde tudo é controlado pela censura e onde não existe básica liberdade de informação, teríamos ganho pelo menos duas semanas na mobilização para a luta contra este vírus que é invisível aos nossos olhos mas que é terrível.
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