Temo-nos deparado com uma inexplicável surpresa acerca dos resultados das eleições presidenciais. Nomeadamente a votação de André Ventura, que conseguiu cerca de 497 mil votos, arrecadando o segundo lugar na maioria dos municípios do país, incluindo o interior e, para surpresa de muitos, o Alentejo, tradicional bastião comunista.

Toda esta situação tem causado uma reacção paternalista, como que parte da população ansiasse por um acto de contrição por parte das pessoas que votaram em André Ventura, ao estilo de Fiódor Dostoiévski nas "Memórias do Subterrâneo": “Eu sou um homem doente... Sou um homem mau. Sou um homem nada atraente. Penso que sofro do fígado. Aliás, não percebo patavina da minha doença nem sei ao certo de que é que sofro”.

Talvez alheados de tudo, a maior parte da opinião pública e crítica ainda não entendeu: o rol de críticas e de atestados de ignorância aos eleitores não vai dar bom resultado. Talvez fosse mais profícuo falar sobre a crise de representatividade democrática e a razão pela qual os partidos políticos estão tão afastados dos eleitores.

A facilidade ou preguiça com que classificamos os votantes do Chega como fascistas, xenófobos ou racistas, espelha talvez o desconforto em analisar as assimetrias e descortinar os verdadeiros problemas do país.

Imiscuímos a responsabilidade do cidadão e da classe política e optamos por ficar pelos laivos de raiva, ódio e lábios vermelhos. Por vezes é confortável ficar redundante e não ver, chamar os outros de ignorantes ou de “rabble”, refugiados na nossa superioridade ética e moral. Não digo isto numa lógica de normalização ou desculpabilização desta franja do eleitorado, mas evidentemente haverá um equilíbrio entre o que estas pessoas são e aquilo de que são acusadas de ser.

Este fenómeno não é novo, são vários os exemplos pela Europa fora, mas, como sempre, chegou tarde a Portugal. É certo que a plataforma de André Ventura é errática, navega ao sabor do vento, profere aquilo que mais lhe interessa, sem ter qualquer visão ideológica ou de caminho para o país, capitaliza as falhas democráticas que existem. De estrutura fraca, assenta só e apenas no carácter personalístico da pessoa. Posto isto, a fixação dos media e a obsessão dos restantes candidatos, serve apenas como um crescente fértil para a sua agenda.

O que o torna grave é que este fenómeno é apenas um sintoma de uma doença mais profunda, sendo necessário um alargar de horizontes para o podermos resolver. Não basta combater os extremismos, como muito está em voga dizer por estes dias.

Estes problemas decorrem dos defeitos estruturais que o nosso país apresenta, desde os vícios corruptos, pouca accountability, o ignorar do interior do país que se sente cada vez mais abandonado e desertificado, mas também da incapacidade dos partidos em resolverem e responderem às verdadeiras aspirações e necessidades dos cidadãos, já que estes estão focados dentro da própria máquina que garante apenas os seus interesses. São assustadoras as similaridades que o país hoje apresenta com o país que motivou Antero de Quental a escrever “As causas da decadência dos povos peninsulares”. Como Max Weber reiterou, não precisamos de políticos que vivam da política, mas sim que vivam para a política.

Urge reflectir e entender finalmente este sinal da necessidade de colocar o dedo na ferida, combater o completo afastamento da população à classe política com ideias, rectidão e com uma visão estratégica para o país, ao invés de se cair no erro da demonização.

Que se perceba de uma vez isto: o povo não mudou, simplesmente os políticos nunca o quiseram ouvir, pelo menos até agora. Que o oiçam agora.

V.Ex.a diz que não. V.Ex.a tem 60 anos, é marquês, ministro pela décima vez, governa alguns milhões de homens... e o conselho que nos dá – com essas honras e esses anos – a nós, rapazes, é que mintamos! - Antero de Quental

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