Um dos jogos de sorte mais apreciados no mundo é a lotaria e Portugal não é excepção. Melhor ainda, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa oferece não uma, mas duas opções: Lotaria Popular e Lotaria Clássica, baseada em datas especiais, como o Natal, que este ano anda à roda no dia 26 de Dezembro e tem um prémio de 12.500.000€.

Nada mau em termos de rendibilidade, para um investimento que pode ser de apenas 15€, mesmo considerando que o Estado fica com 20% de qualquer prémio acima de cinco mil euros em Imposto do Selo, além dos 4,5% que já levou a esse título no acto de compra da aposta.

Os adeptos do Totoloto, do Placard ou da Raspadinha sabem que podem não ganhar um cêntimo, mas, muitas vezes, serve-lhes de consolo esta ideia: "Não ganhei nada, mas ao menos o dinheiro vai para os pobrezinhos", ou seja, para a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e as suas obras sociais. Grande engano.

O jackpot, na verdade, sai sempre ao governo, que é quem fica com o pote de ouro, não só em impostos que cobra logo à cabeça, mas depois na distribuição das receitas líquidas dos jogos sociais. Até a Presidência do Conselho de Ministros (PCM) recebe 3,88%.

No caso da PCM, a verba é destinada "à promoção, desenvolvimento e fomento de atividades, programas, ações ou infraestruturas no âmbito da cultura e da igualdade de género" - recordo que há um Ministério da Cultura, chefiado por Pedro Adão e Silva. Um destes dias ainda vamos descobrir que o dinheiro foi aplicado em casas de banho mistas nos ministérios.

O Santo Governo da Misericórdia fica com 66,45% do bolo e esta fatia tem vindo a aumentar desde 2006. Ao contrário, encolhe a receita da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que começou nos 28% e em 2018 era de apenas 26,52%. Para o Estado vão ainda 2,18%. Os valores estão todos discriminados no Decreto-Lei, que fixa a "Distribuição dos Resultados Líquidos dos Jogos Sociais".

Nem vou discutir o princípio orçamental da não consignação, que estabelece na Lei do Enquadramento Orçamental que "não pode afetar-se o produto de quaisquer receitas à cobertura de determinadas despesas". Afinal, as excepções são tantas - receitas com reprivatizações, receitas dos fundos comunitários, receitas do financiamento da Segurança Social, por exemplo -, que nem se percebe o motivo por que existe a regra.

O princípio da não consignação foi criado porque retira flexibilidade à gestão dos dinheiros públicos e gera restrições, o que pode obrigar o governo a gastar onde nem sempre é preciso em vez de aplicar essas quantias nas necessidades reais a cada momento. Pior, traz para o processo uma quantidade de decisores e objectivos complexos e pouco transparentes.

Mas ainda mais grave é que a situação financeira da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa tem vindo a degradar-se e são cada vez menos os projectos sociais que consegue apoiar e cada vez mais aqueles que se vê obrigada a recusar. O dinheiro não é elástico.

Como se não bastasse, a instituição - de direito privado e utilidade pública, fundada em 1498 pela Rainha D. Leonor com a missão de apoiar principalmente os mais desprotegidos -, foi completamente politizada. Se no passado era escolhido para provedor "um homem bom da cidade", hoje o provedor é escolhido pelo primeiro-ministro (a provedora é desde Maio Ana Jorge, ex-ministra da Saúde), e quem nomeia os restantes membros da mesa é o ministro da tutela (Trabalho e Segurança Social).

Isto significa que existe uma enorme dependência e que muitas decisões, até de investimento, seguem uma orientação política, que muitas vezes condiciona até os negócios em que a Santa Casa da Misericórdia se envolve e que nem sempre são "santos". Neste momento o governo (agora em gestão) é PS e todos os cinco membros da mesa são também do Partido Socialista.

Talvez não por acaso, o Ministério Público instaurou um inquérito que teve origem numa participação da Santa Casa da Misericórdia à Procuradoria-Geral da República e que se encontra em investigação no DCIAP - Departamento Central de Investigação e Ação Penal, processo em segredo de justiça (e do tempo em que o provedor era Edmundo Martinho, que saiu antes do fim do mandato).

Em causa estão irregularidades na contratação de pessoal externo por índices remuneratórios elevados, enquanto os restantes funcionários tinham as progressões na carreira congeladas. A queixa partiu do sindicato que representa os trabalhadores da instituição. Mas há suspeitas de outras ilegalidades.

Uma vez mais, também aqui existe o princípio da presunção da inocência e as pessoas escolhidas pelo governo podem até ter as melhores intenções. Mas, como diz o ditado, à mulher de César não basta sê-lo, é preciso parecê-lo. E é para evitar suspeitas que todas as decisões devem implicar transparência.

As receitas dos jogos explorados pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa deverão atingir os 224,2 milhões de euros em 2024. Segundo o Orçamento do Estado, a previsão de execução das receitas de jogos sociais deste ano é de 207,2 milhões de euros, acima dos valores inscritos no Orçamento de 2023 (205,7 milhões).

Já agora, o último relatório e contas publicado no site da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa data de 2020. Três anos é muito tempo, tanto quanto a diferença entre ganhar a sorte grande ou a aproximação.