1. Como assustar uma criança

Ora, tinha o meu filho três anos quando o levámos a ver um filme — era uma história da Disney sobre dinossauros verdes e inteligentes.

Pois bem, lá fomos nós para o Campo Pequeno, que era o único cinema onde o filme estava ainda em exibição.

Primeiro problema: explicar ao Simão o que é o Campo Pequeno. Bem, é um sítio onde se fazem espectáculos e compras.

Quanto às touradas… Enfim, não vale a pena explicar já as contradições desta vida a um miúdo tão pequeno. A Disney já se encarregaria de lhe mostrar como a vida pode ser cruel para alguns animais.

Estacionámos e reparámos que ele estava um pouco nervoso. Na verdade, ele não sabia bem o que era isso do cinema. Sabia que ia ver um filme, mas havia qualquer coisa de diferente…

"Não fiques nervoso, filho. É como ver televisão. Entramos numa sala e vemos um filme, só que em grande! É giro!"

Ora bem: entrámos no centro comercial, aproximámo-nos do cinema e vimos um grupo de polícias e um enorme detector de metais. Os polícias, claro, revistavam todos os espectadores. É o que acontece sempre no cinema, não é?

Eu e a Zélia entreolhámo-nos. O Simão olhou para os polícias e para nós: tudo isto para ver televisão?

Passámos pelo detector, fomos revistados, os polícias brincaram com o Simão, que se acalmou. Nós rimo-nos. A Zélia afastou-se com o Simão enquanto eu perguntava baixinho a uma polícia: "O que se passa aqui hoje?"

Ela encolheu os ombros: "Nada de especial, é só porque está a decorrer um ciclo de cinema israelita e há sempre a hipótese de haver algum ataque."

"Ah, bom, sendo assim, está bem."

E lá fui ter com a Zélia e o Simão com o ar mais normal do mundo. O Simão já começava a gostar mais daquilo: era animado!

Animadíssimo!

E mais animado ficou quando chegámos ao pé da sala, mostrámos os bilhetes e tivemos de ficar parados à porta porque um polícia enorme nos impedia a entrada:

"O meu colega está ali com um cão a verificar todas as cadeiras. Temos de esperar!"

O Simão: "Mas está ali um cão porquê?"

Podia ter explicado que o cão estava à procura de bombas para garantir que não morríamos todos numa explosão terrível que deixaria o Campo Pequeno transformado numa cratera. Mas optei por dizer:

"Também veio ver o filme."

2. Como pôr uma criança a chorar

Bem, entrámos. A sala estava vazia: éramos nós e uma mulher com o filho, que ficou lá bem atrás. O Simão ficou mais assustado com a falta de gente do que com os cães. Onde tinha ido toda a gente? Porque estávamos sozinhos?

Começámos a ver o filme. Ah, o sossego e o prazer duma sala de cinema no Médio Oriente…

Pois lá começam os dinossauros a fazer aquilo que todos os dinossauros faziam (construir casas, lavrar os campos, educar os filhos) — quando há um acidente e morre o pai do dinossauro mais pequeno.

O Simão, de boca aberta: "O que aconteceu?"

Eu, que já devia saber o que a casa gasta no que toca a filmes da Disney, já não consegui amaciar mais o mundo:

"O pai dele morreu."

"Morreu? Já não volta?"

E desatou a chorar desalmadamente por causa do destino do dinossauro lavrador. Nem imagino o que seria se o filme fosse o Bambi.

3. Como irritar um pai

Bem, hoje em dia, já vai ao cinema sem problemas e até já percebeu que nem sempre há polícia à entrada.

Ainda há pouco fomos de novo ao cinema ver o filme dos Ninjago. Quando o filme começou, ele riu-se e deu saltos de alegria.

Já eu comecei a ficar um pouco impaciente: ao meu lado, um pai decidiu pôr a escrita de e-mails em dia. Passei assim o filme com a luz dum telemóvel à minha direita, como um pequeno sol a iluminar-me a noite. Como que para me castigar pelos maus pensamentos que entretanto me surgiram na cabeça, o filho do senhor deixou cair as pipocas no chão, deixando-me os pés a repisar milho frito durante o resto daquela história de legos à bulha.

Imaginei os bonecos dos Ninjagos a sair do ecrã para darem uma traulitada de plástico na cabeça do escrevinhador — também tive um momento em que senti genuínas saudades dos polícias da outra vez. Tinha ali dois terroristas ao meu lado…

Pelo menos, pensei, o Simão está a gostar.

Até que percebo que, na história daquele filme, o pai do Lloyd, a personagem principal, é o vilão. E que há um reencontro entre os dois, com alguma emoção — e é então que vejo os olhos do Simão a brilhar e as lágrimas a começar a cair…

Bem, tudo isto faz parte do crescimento: perceber que os pais dos dinossauros morrem, que há bonecos de plástico que são maus e que há gente no mundo capaz de pôr bombas e usar o telemóvel no cinema. Ninguém disse que a vida era fácil!

Marco Neves é tradutor, professor e autor do livro A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa e do romance de aventuras A Baleia Que Engoliu Um Espanhol. Escreve no blogue Certas Palavras.