Assim como os países fronteiriços com a Ucrânia recebem milhões de refugiados, outros países – a Turquia, Georgia e Arménia, por exemplo – já estão a alojar duzentos mil russos, segundo a estimativa de um economista russo, fugitivos do regime de Moscovo. Os números não são precisos, mas a Georgia terá recebido trinta mil e a Turquia catorze mil.
Estes “refugiados” russos – internacionalmente chamados de “émigrés”, ou “expats”, uma vez que decidiram viver no estrangeiro voluntariamente – podem não ser muitos (a Rússia tem 144 milhões de habitantes) mas representam o tipo de profissionais que mais falta faz a uma sociedade evoluída, altamente qualificada: especialistas em tecnologia, jornalistas, artistas, professores. O êxodo iniciou-se a partir de 2012, quando Putin lançou a repressão aberta aos seus opositores dito “amadores”, isto é, que não estão na política, mas assumem uma opinião negativa do seu tipo de governação. Contudo, o que era uma emigração praticamente negligenciável ganhou proporções de uma avalancha, segundo a Associação Russa de Comunicações Electrónicas, citada no “The Economist”, a qual, desde fevereiro, já perdeu cerca de cem mil profissionais.
Claro que a grande maioria da população, pouco culta e hipnotizada pela comunicação social estatal, a única permitida, ou não sabe que há guerra, ou pensa que a “operação militar” é justa e bem-sucedida. Um jornalista ocidental assistiu recentemente ao enterro de um militar russo numa aldeia remota (num caixão selado para não se ver o seu estado) e conta que os familiares e amigos o consideram um herói que morreu pela pátria, sem mais considerações.
Portanto, a saída destas centenas de milhares de jovens urbanos e especializados não tem qualquer efeito na opinião geral que é vivida no país. O problema é outro: estes “émigrés” são profissionais em áreas que a Federação Russa não pode perder, pelos efeitos que trará a sua perda a longo prazo.
Se somarmos esta saída de “cérebros” à perda de contactos internacionais motivada pelas sanções, vemos que o ditador está a fazer o país recuar décadas em relação às outras grandes economias que disputam a hegemonia mundial. Não é só no seu sonho de reconstituir o espaço da antiga União Soviética, que Putin está atrasado no tempo; é também no seu desprezo pelos intelectuais e artistas que injectam o impulso que faz avançar uma sociedade.
Não é possível avaliar qual a percentagem de profissionais-chave que abandonam o barco putinista, como também não existem números quanto aos que decidiram ficar e protestar. Segundo os cálculos de várias organizações russas que insistem em contestar o ditador (como a do dissidente Navalny, a Fundação Anti-Corrupção, divulgados pelo “The Economist”), no primeiro dia da invasão mais de 1.300 pessoas foram detidas em protestos em 51 cidades. O número já vai em cerca de seis mil. Não é preciso pensar muito para avaliar a coragem e a raiva que é preciso para que uma pessoa, na Rússia de hoje, saia para a rua a protestar contra o governo, uma vez que sabe ao certo duas coisas: primeiro, que será certamente presa e espancada; segundo, que a sua atitude é apenas simbólica, sem qualquer efeito prático.
Ainda esta semana, vimos uma cena na televisão que seria muito divertida se não fosse extremamente trágica: um jovem, bem-disposto, andava pela rua com um cartaz em branco, uma folha de papel A4 sem nada escrito. Interpelado pelos polícias, recusou-se a recolher o “cartaz” e o chefe da brigada, citando de cor os artigos tal e tal da lei, levou-o preso, ao estilo nacional – algemado atrás das costas, o corpo dobrado sobre si. Gostaríamos de saber se foi presente a um juiz e qual a acusação que se pode fazer a quem nada afirma, mas muito declara...
Nas redes sociais, os protestos têm sido muito maiores do que nas ruas – como sempre, sendo mais fácil tomar uma atitude, mesmo perigosa, no escuro do sofá do que à luz do dia. A revista inglesa fez um levantamento do hashtag “#нетвойне” (“não à guerra” em russo) e encontrou centenas de milhares de posts; mais de 50.000 no Instagram em dois dias (26 e 27 de Fevereiro) e mais de 330.000 até à semana passada. Seguindo 51.773 posts originais, conseguiu identificar a localização de 7.120, dos quais 3.495 dentro da Rússia e os restantes “postados” em 91 países, incluindo a Ucrânia, Bielorússia, Estados Unidos e China.
Claro que estes números – os dos “émigrés” e os dos posts anti-guerra – são mínimos no contexto da população total do país. Mas atestam que há descontentamento entre muitos súbditos de Putin e que esse grupo falta faz ao pensamento contemporâneo da sociedade russa em geral.
Num extenso artigo publicado na revista “The New Yorker”, o jornalista Isaac Chotiner entrevistou vários jovens que fugiram para Ierevan (a capital da Arménia) e ouviu histórias de vergonha, desespero e impotência. Uma geração de russos que depois da queda da União Soviética se pôde abrir ao mundo e se habituou a uma sociedade relativamente livre, não aceita este regresso ao passado, e teme pelo seu futuro.
Uma ditadura é uma ditadura, seja de esquerda ou de direita, e os russos não têm tido muita sorte. A natureza do autoritarismo tem evoluído ao longo dos tempos; seria impossível comparar o regime de Putin (ou de Xi Jinping e outros tantos) aos regimes de Estaline e de Hitler, por exemplo. Mas a resistência sabe adaptar-se e estes jovens russos hão-de encontrar um caminho. Mesmo que, nestes dias de terror, isso pareça impossível – tão impossível como o terror que passa diariamente pelos nossos ecrãs.
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