1. A 19 de Outubro de 2017, um supertelescópio no Havaí detectou um estranho corpo em trânsito no Sistema Solar. Teria forma de charuto ou de panqueca, e nesse momento estava já 85 vezes mais longe da Terra do que a Lua, a afastar-se. Pela forma como se movia, pela velocidade, pelo brilho, pela cor, os astrónomos concluíram que se tratava de um objecto interestelar: que não pertencia ao nosso Sol. A descoberta foi um acontecimento, nunca antes se observara um corpo assim vindo de fora. Os cientistas baptizaram-no com a palavra havaiana ‘Oumuamua, que se pode traduzir como “primeiro mensageiro distante” ou “mensageiro enviado de um passado distante” ou “mensageiro de longe que chega primeiro”.
O director do Departamento de Astronomia de Harvard, Avi Loeb, ousou mais. Elencando as várias peculiaridades de ‘Oumuamua, pôs a hipótese de ser um objecto artificial, enviado por uma civilização com domínio tecnológico. Vários cientistas reagiram com cepticismo ou crítica contundente, considerando esse cenário uma especulação não-científica. Mas esta semana Loeb voltou à carga, em entrevistas para grande público. Li duas, publicadas na quarta-feira. Uma no diário “Haaretz” de Israel (onde Loeb cresceu). Outra na “New Yorker”, a revista com a maior concentração de grande jornalismo que conheço.
O título da “New Yorker” é uma pergunta: “Será que os extraterrestres nos acharam?”. O do “Haaretz” é um “se”: “Se isto for verdade, seria uma das maiores descobertas da história humana”. Ambos reflectem o poder desta história, em pleno começo de 2019. O que ‘Oumuamua evoca é o mistério com que os humanos convivem desde sempre, pelo menos desde que interrogaram o céu pela primeira vez. O desejo, e o medo, de não estarmos sozinhos no espaço. E quanto mais asfixiante for a atmosfera na Terra, mais esse mistério terá peso.
Não por acaso Avi Loeb põe como hipótese que ‘Oumuamua tenha sido enviado por uma civilização entretanto autodestruída. Concebido talvez como sonda de outros sóis, seria agora uma mensagem sobre nós mesmos, que passou rapidamente por aqui, antes que alguém conseguisse tirar uma fotografia.

2. Como não há fotografia, temos apenas representações artísticas de como ‘Oumuamua será, na sua deriva às cambalhotas pelo espaço, agora já longíssimo. Na dimensão maior terá umas centenas de metros, é avermelhado, rápido e brilhante, sem a cauda habitual dos cometas. Não é um cometa, nem um asteróide, garante Loeb.
Os aparelhos do projecto The Search for Extraterrestrial Intelligence que chegaram a monitorar este invulgar objecto não detectaram nada, nem bips, nem mensagens de rádio, nem emissões de radar. Mas o ponto de Loeb é que muito pouco foi feito, por não estarmos preparados para isso, e para a próxima termos de estar.
Doutorado em física aos 24 anos na Universidade Hebraica de Jerusalém, Loeb nasceu num moshav (espécie de cooperativa agrícola) fundado em 1929, antes, pois, do Estado de Israel. Mudou-se muito novo para os EUA, onde começou a trabalhar em astrofísica, primeiro em Princeton. Tem 56 anos e descarta qualquer aproximação entre acreditar em OVNIS e a crença religiosa, como esclarece na entrevista à “New Yorker”, conduzida por um incisivo Isaac Chotiner. Pela transcrição, dá para imaginar o duelo.

3. “Não encaro a possibilidade de uma civilização tecnológica como especulativa por duas razões”, diz Loeb. “Primeira, nós existimos. Segunda, pelo menos um quarto das estrelas da Via Láctea tem um planeta como a Terra, com condições à superfície muito semelhantes às da Terra, e onde se podia desenvolver a química da vida tal como a conhecemos.” E há dezenas de biliões de estrelas na Via Láctea, logo, “é muito provável que não estejamos sozinhos”.
A hipótese de Loeb é que a civilização que eventualmente enviou ‘Oumuamua está ou tenha estado nesta galáxia. “Pode estar morta agora. Nós também não cuidamos bem do nosso planeta. Imagine outra história, na qual os nazis tinham uma arma nuclear e a Segunda Guerra acabava de forma diferente. É possível imaginar uma civilização que desenvolva tecnologia assim, que levaria à sua destruição. É possível que essa civilização já não exista mas tenha enviado uma nave. Nós enviámos a Voyager I e a Voyager II. Pode haver muito equipamento no espaço. O importante é que este é o primeiro objecto fora do Sistema Solar que encontramos.” Pode ser “uma mensagem numa garrafa, e devemos ter o espírito aberto”. Parte da motivação de Loeb, sublinha ele, é instigar “a comunidade científica a colectar mais informação sobre o próximo objecto, em vez de argumentar à partida que conhece a resposta”.
Loeb rejeita o argumento de que a sua hipótese não é científica. “Aquilo de que estamos a falar é parte da ciência. Vimos um objecto de fora do sistema solar, e estamos a tentar perceber de que é feito, e de onde vem. Não temos tanta informação como eu gostaria. Tendo em conta a que temos, coloco esta hipótese, e as pessoas ficam incomodadas por sequer pensar nisto, tal como a igreja ficou incomodada nos dias de Galileu, com a hipótese de pensar que a Terra anda à volta do Sol.”

4. “Não temos forma de saber se é uma tecnologia activa, ou uma nave que já não está operacional e continua a flutuar no espaço”, reforça na entrevista ao “Haaretz”. Onde coloca questões muito interessantes, e que se podem aplicar a vários contextos, sobre o medo que tolhe os cientistas em posições seguras. “Cientistas com um estatuto sénior dizem eles mesmos que este objecto é peculiar, mas ficam apreensivos quanto a partilhar essa ideia em público. Não entendo isto. Afinal, seria suposto os lugares catedráticos darem aos cientistas a liberdade de correr riscos sem a preocupação de perder o emprego.”
A abordagem a um caso como ‘Oumuamua devia ser “arqueológica”, defende. “Tal como escavamos na terra para encontrar culturas que já não existem, temos de escavar no espaço para descobrir civilizações que existiram fora do planeta Terra.”
Se toda esta hipótese se revelar incorrecta, pode ser uma espécie de “suicídio” defendê-la, admite. “Por outro lado, se se revelar correcta, é uma das maiores descobertas da história humana.” Tudo somado, Loeb antecipa: “Qual a pior coisa que me pode acontecer? Aliviarem-me dos meus deveres administrativos [como responsável pelo Departamento de Astronomia de Harvard]? Isso traria o benefício de eu ter mais tempo para a ciência.”

5. Os povos tupi-guarani de 1500, com que os portugueses primeiro se cruzaram na costa da Bahia, tinham uma complexa cosmogonia, da qual fazia parte a ideia da Terra Sem Mal, um outro mundo, de onde deveria vir um emissário, alguém que os conduziria lá. Quando aqueles estranhos barcos apareceram no horizonte, com as suas velas infladas, e de lá vieram aqueles estranhos seres peludos, com os corpos tapados por estranhas coisas, e objectos de metal que cortavam, os indígenas tê-los-ão associado num primeiro momento a seres mágicos, divinos, talvez enviados da Terra Sem Mal.
Anos depois, quando Cortéz chegou ao México, o líder azteca Moctezuma também o associou a um ser poderoso de outro mundo. As circunstâncias são diferentes do que aconteceu na Bahia, mas há correspondências na visão de um alienígena que se teme e deseja ao mesmo tempo.
No começo do século XVI, a presença da magia era dominante, por tudo o que não se sabia. Hoje mandamos naves aos confins do espaço. Ainda assim, quantos terráqueos acreditam que a Terra é plana, o creacionismo está vivo e activo, mitos absurdos enchem templos absurdos, e ajudam a eleger políticos absurdos.
E à semelhança de quem se quer entregar a uma solução, ao mesmo tempo que a receia, vivemos no pré-apocalipse da Terra mas deixámos de interrogar o céu. Vivemos o tempo da ciência com o medo irracional do nosso próprio fim, a ponto de não conseguirmos contemplá-lo. Como devemos parecer patéticos aos povos indígenas, que tão bem conhecem o apocalipse trazido pelo homem branco.

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