Então, é para terraplanar ali a zona de Belém, não é verdade? Parece que há quem queira deitar abaixo o Padrão dos Descobrimentos, uns porque foi feito por Salazar, outros porque simboliza o colonialismo, outros por ambas as razões e outros ainda só porque moram ali perto e tapa-lhes a vista para o rio.

Rapidamente, e como acontece hoje, seja sobre monumentos ou sobre marquises, transformaram a discussão em ideologia política de esquerda contra a direita: quem quer demolir é um esquerdalho que devia ir para a Venezuela e quem não quer demolir é um facho que deve ser cancelado. Ora bem, eu acho que quem se opõe veementemente à demolição e a discussão sobre se os Descobrimentos foram bons ou maus, deve ceder parte do seu ordenado para ajudar países que foram saqueados pelos colonizadores portugueses; já quem acha que o Padrão deve ser demolido e quer cancelar os Descobrimentos, nunca mais podia meter canela no arroz doce nem no pastel de nata porque o uso generalizado da canela foi fruto da chegada ao Sri Lanka por parte dos portugueses. Pois, assim já ia custar.

O pessoal nas aulas de história está no telemóvel a publicar tweets a dizer “Esta aula é uma seca, mm tipo juro” e depois queixam-se que a história faz uma espécie de white washing dos Descobrimentos. E faz, a verdade é que faz, mas também não me lembro de ter tido professores que diziam “E os Descobrimentos foram a melhor altura de sempre porque chegámos a África e toca a matar e escravizar pretos mesmo à vontade que aquilo era tudo nosso!”. Devem ensinar-se as várias nuances dos Descobrimentos? Claro que sim, especialmente o impacto que ecoa até aos dias de hoje no racismo ainda latente em muitas facetas da sociedade. Mas não dá para cancelar os Descobrimentos, lamento. Já aconteceram. É um bocado complicado cancelar coisas que já aconteceram. Nem o contrato com a NOS um gajo consegue cancelar sem se chatear, acham que os Descobrimentos se cancelam com hashtags e meia dúzia de tweets? Tenham juízo.

Deixem lá o Padrão dos Descobrimentos sossegado que fica bem nas fotos e, no fundo, é isso que interessa. Ninguém pensa nas influencers e nos turistas? As obras em Lisboa já parecem intermináveis e ainda se querem mais? Em termos ecológicos também não faz sentido deitar-se abaixo um monumento daquele tamanho. Uma coisa é abalroar uma estátua de um general confederado com uma pickup, outra é deitar uma coisa daquelas ao chão. Vai gastar-se muito combustível fóssil e fazer chiqueiro. Numa altura em que temos de ser ecológicos, não se pode estar a gastar recursos para destruir em vez de construir. A não ser que para ser ecofriendly se utilize apenas trabalho braçal e se dê uma picareta para as mãos de todos aqueles que nas redes sociais querem demolir o Padrão. Isso, sim, era activismo, ali ao sol a trabalhar no duro.

Eu nem tenho nada contra demolir-se uma coisa em particular. Se demolissem o Padrão era para o lado que dormiria melhor. Já lá fui acima uma vez tirar umas fotos, está feito. Só voltaria se fosse para engatar uma estrangeira e levá-la lá ao pôr-do-sol, mas é muito ventoso, (o que poderia ser bom, caso ele levasse um vestido primaveril, mas também é bom deixar o mistério para depois do jantar). Bem, afastei-me do tema: o problema é o precedente que se abre quando se decide demolir alguma coisa, até porque demolir é divertido e um gajo quer mais. Toda a gente gosta daqueles vídeos de prédios a implodir. O Castelo de São Jorge? Também foi renovado durante o Estado Novo. Fica ou vai? Até onde? Só as torres ou ali até às muralhas? Aliás, faz sentido termos castelos, no geral? Parecendo que não, todos os castelos e palácios foram construídos com base num sistema altamente desigual, onde a nobreza subjugava o povo e ainda fazia questão de esfregar a riqueza na cara dos plebeus ao construir edifícios opulentos, todos trabalhados e forrados a talha dourada. Fora que a maioria deles foi com dinheiro roubado e com auxílio de mão-de-obra escrava. Vai tudo ao chão? Mesmo o de Almourol que é tão lindo? E o Palácio da Pena que parece saído de um conto de fadas? E os contos de fadas sobre príncipes e princesas que não referem as dificuldades do povo? Sim, porque a Gata Borralheira virou princesa e bem que se esqueceu de onde vinha, virou uma diva que tinha escravos e escravas para lhe escovar o cabelo, mas essa parte da história omitem dos livros. Se calhar estou a divagar, mas o problema é mesmo esse, onde parar? Vamos ter de chamar o Jel e o Vasco para mandar tudo abaixo e começar de novo.

Uma nota à parte: acho curioso nunca ninguém falar em demolir igrejas. Se estamos a falar de símbolos de opressão, há poucas instituições que mataram e propagaram tanto ódio ao longo da história como aquelas que as igrejas representam. A religião nunca vai precisar de vacina porque parece ter imunidade para tudo.

Em suma (que era como eu terminava sempre as composições na escola), criem-se museus e lugares onde a história seja contada e a memória seja mantida e invista-se na (re)educação, porque para apagar acontecimentos já basta o Alzheimer da minha avó. Se mesmo com os museus ninguém aprender nada, ao menos que sejam bonitos por fora para lá irmos tirar umas selfies sem nunca lá termos entrado, como no caso do MAAT. Acho que em vez de querermos deitar abaixo o Padrão, devíamos preocupar-nos mais em tentar elevar outros padrões.

Sugestões:
Para ver: Your Honor, na HBO
Para rir: Consultório sexual do Doutor G, no YouTube