O sentimento de pertença constitui uma das necessidades básicas do indivíduo. Somos tendencialmente gregários e estar incluído num grupo, em que todos os seus elementos têm um fator comum identificativo, gera conforto e segurança. Esse fator comum pode ser de variados tipos, mas pode ser dividido em dois grandes grupos: uns a que escolhemos pertencer, outros a que pertencemos por natureza.

Entre o primeiro, e dispensando os inúmeros exemplos que poderíamos enunciar, releva-se a escolha religiosa — esta apenas em estados laicos e com liberdade religiosa, havendo estados teocráticos em que um apóstata poderá sofrer graves retaliações — e a adesão a grupos organizados de membros com ideais políticos similares, que se designam vulgarmente por partidos. 

Estes dois exemplos, entre muitos outros, são importantes para ajudar a definir uma pessoa: se alguém adere convictamente a um determinado partido ou a uma religião e partilha, pratica e defende, em total coerência com essa adesão, os seus princípios, normas ou ensinamentos, permite desvelar um pouco de cada indivíduo. Claro que um membro destes dois coletivos não é apenas isso, mas também é isso.  

No outro grupo, aquele que não escolhemos e que mais influência tem no nosso ser, incluem-se, por exemplo, a família a que pertencemos, a nossa nacionalidade, etnia, sexo, género, tendência sexual ou classe social. A classe social, integrada neste conjunto, pode soar a incongruência e é termo em desuso, mas continua a ter um impacto determinante naquilo que somos e no que podemos ser.

Teoricamente, e em princípios universalmente estabelecidos, todos somos iguais em direitos e deveres, mas a realidade não funciona assim. Continuam a existir diferenças de poder financeiro, e talvez existam sempre, e assim as oportunidades nunca serão iguais. Mas, entretanto, a luta de classes teve o seu epitáfio com o embuste da meritocracia.

Não será então uma regra elementar, para saber quem somos, saber a quem pertencemos? Não será também razoável esperar que os elementos de um grupo não tomem posições adversas a esse mesmo grupo?

Tomemos vários exemplos: não se espera que um homossexual seja homofóbico; que um negro seja defensor de políticas racistas ou de supremacia branca; que um imigrante vote em partidos que pretendem expulsar os imigrantes; que um judeu seja nazi; que um assalariado defenda ideias de sociedade ligadas a uma superlativa desigualdade na distribuição da riqueza e admita os despedimentos sem justa causa, ou enfim, que um cigano vote no Chega.

Como se pode classificar, então, este tipo de pessoas que agem de modo explícito, conscientes ou não, contra os seus pares e por motivos espúrios? 

Claro que não há forma de determinar as razões que levam essas pessoas a agir dessa maneira, porque isso obrigaria a estudos de circunstância ou contextualizações históricas, mas não será errado admitir que surgem, em grande parte, por analfabetismo ou utilitarismo egoísta. Neste utilitarismo inclui-se, obrigatoriamente, aquilo que é útil para viver ou até sobreviver e a ação pode ir de uma inócua incoerência, vulgo estupidez, até a uma brutal traição.

No paroxismo desta esquizofrenia, que levou a espécie humana a níveis desprezíveis, foi até possível matar os seus iguais, apenas por causa disso mesmo... serem seus iguais. Aparece-nos o kapo judeu na Alemanha nazi e o esclavagista negro, no sul dos Estados Unidos, no século XIX. Mesmo com uma análise diacrónica, estes desastres do comportamento humano nunca poderão ser isentos da sua dimensão reles e ignóbil.

Num interlúdio e individualizando a coisa, sobressai, nesta linha de conduta, o sinistro Roy Cohn, procurador nos Estados Unidos no tempo da caça às bruxas: manipulador, plantador de provas, pérfido, que entre outras “proezas” conseguiu levar à cadeira elétrica o casal Rosenberg e, apesar de ser um iniludível gay, acusou e perseguiu homossexuais. Por serem criminosos? Não… por serem gays! Esta personagem que de humano tinha apenas a forma, curiosamente ou nem tanto, foi o mentor de Donald Trump... Para que conste. 

Mas pode-se perguntar: pertencendo a um grupo terei de acriticamente defender esse grupo? Não, a questão não é essa. A questão é: pertencendo a um grupo, por sangue ou determinismo, terei autoridade moral para atentar contra ele? 

Volta-se ao tema das escolhas e do pensar. A cada minuto que passa exige-se melhores escolhas e um pensar melhor. Se soubermos a quem pertencemos, talvez consigamos escolher melhor.

E existe uma certeza: os mais frágeis terão sempre menos hipóteses para falhar, sob pena de sucumbir. Quem é contra os seus pares, como poderá ter empatia ou até alteridade com os seus diferentes? Aqueles que agem, por ignorância, malvadez ou egoísmo, na defesa dos interesses dos que mandam e se opõem aos iguais, não percebem que são apenas adereços de cenário, que finda a peça são mandados para o lixo.

Tudo isto serão banalidades, mas quando estamos rodeados de mentiras e as evidências são postas em causa, é apenas o que resta para ajudar a entender.