Refiro o assunto da ordem do dia porque quero escapar à ordem do dia. Não é que me falte opinião sobre a descida da Taxa Social Única, a subida de salários, as concertações e promulgações e oposições. Não só não me falta opinião como ainda tenho rezinguice e pessimismo a acompanhá-la, mas apetece-me dar folga ao rosnar habitual. É dia de ser formiga e cigarra, não buldogue. Diria então que, sobre as negociações na Concertação Social, “não sou contra nem a favor, antes pelo contrário” – frase que me lança para o nível de quem chama telelé ao telemóvel, usa a expressão “barulho das luzes” ou reduz oralmente a palavra Facebook à sua primeira metade. Entre a aparência de cretino e de cabotino escolhi um benfazejo intermédio. Hoje só não pode dar buldogue.

Peço desculpa pelas generalizações e desinspirações até aqui avançadas. Asseguro que cumprem os seus papéis narrativos. São, para já, uma espécie de resignação de quem está de luto. Não é luto por ter perdido alguém próximo anteontem na chamada Blue Monday (a 3ª segunda-feira de Janeiro convencionou-se como o dia mais triste do ano; é um mito científico, mas com a infeliz coincidência de haver demasiada gente a tirar a própria vida nessa data), só que dificilmente ignoro quem se anda a suicidar com tiros no pé -  caso dos nossos jornais. As demissões, despedimentos, abandonos compulsivos (queria dizer “compulsionados”, mas a palavra não existe) de ilustríssimos colunistas faz-me desejar este protesto desinspirado contra o calar dos que, provavelmente, foram enjeitados por delito de inspiração. É certo que aqui já reprovei sem mesuras um dos que agora saúdo: José Vítor Malheiros. Certo que muitas vezes discordei da simpatiquíssima Alexandra Lucas Coelho. Certo que raramente subscrevi o bulício do Alberto Gonçalves. Mas certo mesmo é que o futuro editorial da imprensa portuguesa deu, neste início do ano, um salto para a incerteza. Ao contrário de quase tudo na vida, as virtudes do jornalismo estão nas palavras, não nos actos, e o assumir de ideologias será sempre muito mais íntegro em quem as exprime do que em quem, qual titereiro ocultado, as manobra. Fica um parágrafo de luto e solidariedade para com pessoas a quem não me arrogo de chamar companheiros de armas – não tenho a classe dos bons dessa classe, e eles não se podem dar ao luxo das vezes em que me dou ao lixo. Nenhum escapou a ser buldogue quando a consciência ou a deontologia lhes disse que era altura de rosnar.

Por aqui, a hora é de ser formiga e cigarra, e só não digo “literalmente” porque faço parte daqueles animais em vias de extinção que sabem o que “literal” quer dizer. O que estou a fazer de momento, paralelamente a este texto, é a escrever uma letra e música para o Festival da Canção. Trabalho com afinco de formiga num ofício de cigarra. Para tal empreitada não usei a desinspiração como voto de luto e protesto, foi ela a usar-me por veículos próprios e insondáveis (a inspiração pode ter visto melhores dias, mas a auto-depreciação está impecável). Não é meu intuito guardar o final desta crónica para uma reportagem, seja sobre processos criativos, seja sobre os bastidores dum Festival da Canção. Este capítulo pessoal chega antes como uma espécie de mea culpa. Se existe um tema recorrente nas minhas colaborações aqui no SAPO 24, poder-se-ia apontar talvez o da Cultura Popular. Tenho tendido a tratar a Cultura Popular como uma construção mais importada que endémica. Insinuei que a matéria nostálgica que amontoamos, e nos acultura, é muito americanizada; já a memória nativa, portuguesa e europeia, perdeu capacidade de entranhar os nossos patrimónios. É uma generalização em bruto que mantenho, mas não deixa de cometer o pecado de todas as generalizações. O meu envolvimento com o Festival da Canção alargou-me a perspectiva.

A antiga popularidade e actual impopularidade do concurso musical da RTP não são nenhum mistério. Antes havia relevância cultural, correspondida no gabarito dos compositores e letristas; havia um reflexo político óbvio ou contrabandeado; havia o peso dum evento anual tratado com pompa no canal de televisão único, tornando-se instituição e tradição familiares. Havia a presença dos intérpretes mais relevantes, sobretudo num tempo em que a televisão, consciente ou inconscientemente, validava e cartelizava o nosso espólio de cantores. Havia o orgulho nacional voltado para uma competição internacional (numa altura em que o desporto não era entretenimento familiar). “Havia a ausência” de alternativa. À vez, foram-se desvanecendo todos estes factores. Veio o desinteresse. Nem as tentativas de revitalização (ou fenómenos excêntricos como os Homens da Luta) mascaram o obsoletismo do Festival, nem lhe recuperam apego continuado. Será mesmo assim?

Logo após o convite da RTP, e do meu nome ter sido discretamente noticiado entre o rol dos autores escolhidos para o Festival, comecei a receber uma bátega de auto-propostas espontâneas de cantores, querendo assegurar a interpretação da minha música. Logo nesse dilúvio de mensagens (e na desconfiança de que muitos dos proponentes nunca teriam ouvido o meu nome até à data) percebi que as minhas suspeitas da irrelevância do Festival da Canção eram exageradas. O abalo maior, contudo, chegou com os sucessivos pedidos de declarações e entrevistas por parte de aficionados. A quantidade, qualidade e, sobretudo, fervor dos entusiastas do Festival da Canção pareceram-me impressionantes. São organizados, dispersos por vários núcleos (se funcionassem como gangues rivais violentos eu ia querer escrever o argumento de adaptação ao cinema), com um rigor e conhecimento enciclopédicos sobre todos os festivais e seus intervenientes. O melhor: não são meros trainspotters, nem pessoas presas à grandiosidade do passado; são curadores activos do presente e esperançosos no futuro. A haver idealismo, que seja o do porvir.

Como isto é uma história com formigas e cigarras, tem de haver moral de fábula, e não é nada má. Quando falamos de cultura popular, no seu sentido mais actual, global e ocidentalizado, desconfio do nosso espólio nostálgico; nós, portugueses, não somos só os únicos a exprimir saudade, também somos os piores. Normalmente temos saudades de coisas menos más situadas em tempos péssimos, e desejamos pactos com diabos do passado para escapar a comichões do presente. O Fado, nosso melhor património, descreve a inevitabilidade do fado, nosso mais insuportável defeito. Mas há mais música. Há mais canções. Há gente que entesoura gloriosas cantigas do passado sem desejar os contextos de mordaça. Há gente festivaleira que admira as ruínas de antanho, porque são alicerces para uma grandeza que pode voltar. Há gente a desejar recuperar relevância cultural e institucional nas formas de expressão mais populares. Nunca imaginei pacificar-me assim com o sebastianismo, ainda menos neste cujo nevoeiro congrega António Calvário, Nucha e Lúcia Moniz.

SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO

Não pude escrever na semana passada, exactamente quando me caberia a necessária homenagem a Mário Soares. Por todas as exactas razões que me levaram a aqui contestar o voto de pesar por Fidel (supressor de liberdades com mãos manchadas de sangue), Soares merecia o contraponto de louvores. Findo o tempo de elegias, que se mantenha viva a história dos que fizeram a diferença. É isso que o Vasco Pulido Valente está a fazer no Observador.

Quando a nostalgia e a basófia se juntam acabo a dizer que, através da animação que a RTP transmitia nos anos 80, a minha infância foi mais bonita que a tua.

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