Para chegarmos a uma possível resposta, imaginemos um mundo onde a humanidade falava uma só língua. Nesse mundo monolingue, imaginemos o dia em que alguém descobre um animal novo. O nosso descobridor dá um nome ao animal: elom. Caça o pobre animal e leva-o até à sua tribo, onde todos ficam contentíssimos. O elom é delicioso bem assado no fogo (tecnologia que a tribo tinha descoberto umas semanas antes).
Dias depois, a nossa tribo encontra uma outra tribo. Contam, entusiasmados, a descoberta do elom. A outra tribo fica baralhada e diz-lhes que aquele animal se chama ganim! Já andavam, aliás, a comer ganim assado há muitos anos!
Raios. E agora? Elom ou ganim? Como manter a unidade da língua mundial?
Não há resposta. Seria impossível. Cada tribo vai continuar a chamar ao animal o nome que inventou: elom ou ganim. Mesmo que aquelas duas tribos chegassem a acordo (e não chegariam), uma terceira tribo poderia nem vir a saber que o animal que anda a comer tem outro nome na tribo da floresta ao lado.
Multipliquem isto pelas descobertas e invenções de cada tribo e aí têm: várias línguas. Multipliquem ainda pelo número de tribos do mundo e percebem por que razão se multiplicam as línguas.
Estou a concentrar-me, só para facilitar o exemplo, no léxico. Mas o mesmo se aplica à sintaxe e a todos os aspectos da língua. Convém ainda avisar: estes processos raramente são conscientes. A gramática de cada língua vai surgindo através da interacção entre os falantes, sem que nenhum Conselho Superior da Língua determine quais são as regras…
Se quisermos pensar um pouco melhor na questão, imaginemos que a tribo original se divide em três. Anos depois, uns dirão elom, outros dirão alom, outros dirão alomi, e por aí fora: em breve teremos três línguas. Portanto, mesmo quando começamos com uma só língua, rapidamente encontramos divergência linguística se houver algum tipo de separação entre os falantes.
Como a humanidade nunca viveu como uma só tribo (pelo menos, nos últimos largos milhares de anos), nunca poderia ter uma só língua, a não ser que essa língua fosse muito limitada e inflexível. Ora, a linguagem humana é flexível: é isso que a distingue das formas de comunicação animal (que nós também temos: basta pensar nos gritos). Para ser flexível, tinha de estar sujeita a mudança e permitir a dispersão, porque é impossível uma reunião de toda a humanidade para discutir que palavra usar para cada situação nova que encontramos.
Em suma: as diferenças entre línguas são o preço que pagamos pela flexibilidade dessas mesmas línguas. Sempre ficámos com um mundo mais interessante...
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é Pontuação em Português.
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