O mundo para cima ou para baixo
Há coisas que são como são há tanto tempo que parece ser impossível imaginá-las de outra maneira. Por cá, o sinal de STOP, por exemplo, tem uma peculiar forma octogonal e uma palavra inglesa no centro. Podia ser outra palavra ou outra forma? Sim, claro.
Mas hoje já parece natural que seja assim — e não me parece razoável mudar o sinal agora (seria, aliás, bastante perigoso).
Enfim, que os sinais de trânsito são convenções é bastante claro. Aliás, conduzimos pela direita, mas há muitos países que decidiram conduzir à esquerda. Houve até países que mudaram a certa altura. Dois exemplos? A Suécia, nos anos 60 — e Portugal, nos anos 20 (sim, já conduzimos pela esquerda).
Talvez um pouco menos óbvia seja a ideia de que os relógios também são uma convenção, divididos como estão em doze partes, com o 12 lá em cima. Ainda há umas semanas trouxe a esta crónica a curiosa história dos relógios que têm o 12 cá em baixo...
Mas há mais convenções que, de tão usadas, já nos parecem naturais. Por exemplo, escrevemos da esquerda para a direita, mas podíamos escrever da direita para a esquerda — como, aliás, fazem os árabes. Nem os livros têm uma direcção natural: a lombada está à esquerda nos livros em português, mas os livros japoneses têm a lombada do outro lado...
Tudo isto só para chegar à própria orientação do mundo: o Pólo Norte está lá em cima — mas podia estar lá em baixo...
Todos temos na cabeça, de forma muito bem martelada, que o Norte fica em cima e o Sul fica em baixo. Ninguém — mas mesmo ninguém — diz que vai para baixo quando viaja de Lisboa para o Porto. Já dizer que vamos para cima quando viajamos do Algarve para Lisboa parece bem natural...
É difícil imaginar que o mundo fosse doutra maneira. Os australianos vivem lá em baixo, nós vivemos cá em cima.
E, no entanto, a Terra está a navegar pelo espaço sem que haja um tecto ou um chão... Uma das primeiras fotos do nosso planeta, tirada por astronautas em 1972, costuma aparecer na direcção “certa”, mas no original tinha o Sul por cima:
A fotografia, tal como aparece em revistas e livros, está com o Sul por baixo. Porquê? Para que ninguém estranhe...
Um continente exótico
Ando a ler um livro — A History of the World in Twelve Maps — em que o autor (Jerry Brotton) afirma ser difícil perceber por que razão o Norte acabou por ficar, de forma praticamente definitiva, na parte de cima dos mapas. Afinal, não é um facto universal.
Note-se, por exemplo, onde está a Europa na Tabula Rogeriana, mapa de al-Idrisi, cartógrafo muçulmano que viveu em Palermo e nasceu em Ceuta:
Uma das surpresas deste mapa é reparar como a Itália está deitada... Pois, curiosamente, se formos até ao Google Earth e virarmos a Europa ao contrário, também acabamos com uma Itália estranhamente deitada. É apenas um exemplo de como o mesmo mapa virado ao contrário tem um sabor muito diferente. Como quando repetimos uma palavra conhecida muitas vezes, o mapa começa a estranhar-nos, a parecer o resultado do trabalho de um escritor de fantasia...
Não sei se acontece com todos, mas ao olhar para este continente de pernas para o ar, começo a imaginar outras histórias, outras aventuras... As habituais associações que fazemos ao Norte e ao Sul começam, devagar, a cair. São terras exóticas, estas...
Não que o continente que temos não seja interessante por si. Tem, aliás, uma História demasiado interessante — e que assim promete continuar por muitos e bons séculos.
O nosso país deitado
Bem, olhemos para aquele país ali virado para o canto superior direito... Com o Google Earth, podemos virar o país ao contrário a nosso bel-prazer. Ficamos com o Minho cá em baixo e o Algarve lá bem em cima, onde as águas são mais quentes e, se subirmos mais um pouco, vamos parar, não à Galiza, mas a Marrocos:
Não sei bem porquê, mas olhar para o mapa assim leva-me a notar certas características do país: Lisboa parece-me mais distante do Minho do que pensava; ali, a meio, aquela reentrância espanhola no corpo do nosso país surge um pouco menos natural, mais recortada...
É um absurdo? Não faz sentido? Estamos habituados a imaginar um país que foi criado de cima para baixo, um país em que o mar está à esquerda. O contorno do país é, hoje, um dos símbolos nacionais. Mas, no fundo, podíamos ter acabado com uma imagem diferente. Afinal, os nossos primeiros mapas punham o Algarve nem em cima nem em baixo: ficava à esquerda! Aqui está a Carta de Portugal de Fernando Álvaro Seco, na versão editada no Theatrum Orbis Terrarum de Abraham Ortelius, em Antuérpia, no ano de 1570:
Já foi há muito tempo? Pois, já no século XIX, ainda apanhamos Portugal assim deitado — mas desta vez de barriga para baixo:
Foi este estranhíssimo mapa — encontrado, por acaso, nesta página — que me levou a escrever esta crónica...
A verdade é que, se olharmos para o mapa do nosso país, de pernas para baixo, a fazer o pino, deitado ou na direcção habitual — o contorno é-nos tão confortável como a cama da infância. Conhecemos bem este mapa e desenhamo-lo com o dedo, a sorrir...
E com esta conversa toda, fiquei com uma vontade irreprimível de viajar. É o que dá olhar para mapas...
Marco Neves | Tradutor, professor e autor. Escreve sobre línguas, livros e outras viagens no blogue "Certas Palavras". O seu livro mais recente é o Dicionário de Erros Falsos e Mitos do Português.
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