Qual a dimensão da sua presença? Para nós é claro: no Século XX português destacam-se três políticos ímpares: Afonso Costa, António Salazar e Mário Soares. Outros nomes importantes, exaltados conforme a cor política de quem faz o balanço, são apenas outros, nem melhores, nem piores enquanto pessoas; não tiveram a oportunidade nem a sagacidade de moldar a coisa pública com a mesma marca pujante.
Tive oportunidade de conhecer Mário Soares no princípio do período a que se costuma chamar de “soarismo”: entre 1974 e 1985, anos em que foi ministro dos Negócios Estrangeiros e depois Primeiro-Ministro. Continuou na vida pública, até foi Presidente da República, e nunca abandonou as suas causas até à morte; mas foi nesses anos de Governo que teve um papel determinante na formatação política (e, por inerência, social) do Estado que temos até hoje, já adentro do século seguinte.
Nesses anos, dificilmente alguém diria que eram anos soaristas; a luta política constante, na procura de um formato para o Estado e o entrecruzar de protagonistas, em peripécias por vezes perigosas, não permitia ver um rumo coerente no que estava a acontecer. E, realmente, o percurso não mostrava pertinência no seu todo, com avanços e recuos de todas as partes e constante remanuseamento dos poderes civis e militares. Tratava-se de marcar território para a Assembleia Constituinte que determinaria a Constituição, medir a força das várias ideologias e resolver o problema premente da Descolonização, tudo ao mesmo tempo. No meio de pressões internacionais, e através de diplomacia e rapidez de decisão, Mário Soares foi fundamental na determinação do modelo de República que temos até hoje. Soube ser maleável e inflexível conforme os acontecimentos requeriam, com uma percepção muito clara do que estava em jogo, escolha certa de aliados e uso inteligente das limitações internas e externas. Se vivemos numa democracia parlamentar de modelo ocidental, com liberdades extensas e oportunidade social (incompleta e periclitante, com certeza, mas genética) devemo-lo a alguns, mas devemo-lo sobretudo a Mário Soares.
Os seus inimigos atiram-lhe duas responsabilidades: os de direita, a Descolonização apressada e atamancada; os de esquerda, o conluio com os americanos a favor de um capitalismo sem preocupações sociais.
Quanto à Descolonização, é preciso levar em conta dois factores incontornáveis. Em primeiro lugar, a má descolonização foi o culminar inexorável das políticas coloniais anteriores. No Estado Novo, quer com Salazar, quer com Caetano, nunca foi dada oportunidade aos brancos de se auto-gerir e aos negros de se emancipar. A acrimónia entre colonos e nativos tinha chegado a um ponto que não era possível apaziguamento e reajustamento equitativo entre eles. Em segundo lugar, as tropas portuguesas estacionadas nas colónias recusaram-se a lutar a partir de 26 de Abril. Ninguém queria arriscar a vida numa guerra com os dias contados. Os rebeldes viam-no (qualquer militar que lá estivesse em 1974 o confirmará) e portanto o Governo português não tinha poder de fogo para impor uma solução que salvaguardasse os colonos. Nem tinham sido estudadas soluções para os casos especiais, como a dos funcionários públicos ultramarinos. Depois de uma guerra sem quartel, não era possível uma paz cordial. Só restava fugir, com a roupa do corpo. Não havia qualquer condescendência internacional para outra solução. Soares tinha consciência deste drama, mas teve de o ultrapassar.
Quanto à famigerada “aliança” informal com os americanos – porque os outros governos europeus não estavam interessados em interessar-se – não foi nem linear, nem simples, nem espúria. Há que ver a situação no contexto da Guerra Fria. Kissinger, um falcão com olímpico desprezo pelos países de segunda linha, teve duas posições quanto ao caso português (isto conforme documentação tornada pública posteriormente); por um lado, considerou uma invasão militar, por outro, pensou que até seria bom que Portugal se tornasse uma República Popular, para servir de exemplo aos outros países europeus – “assustá-los”, nas palavras dele. Ao nível da política interna, estava disposto a apoiar as forças mais reaccionárias, salazaristas (ainda os havia, como ainda os há) ou dos militares de direita. Frank Carlucci, foi enviado à pressa para Lisboa (em Janeiro de 1975) para substituir Stuart Nash Scott, um diplomata de carreira que estava num posto sem importância e não tinha a menor preparação para a situação que de repente lhe rebentou na cara. E foi Carlucci que, fazendo uma avaliação correcta da situação, percebeu que Soares tinha as qualidades e ideias necessárias para conter os marxistas-leninistas sem recurso à guerra civil. Soares, realmente, convenceu os americanos que poderia resolver a situação. Claro que há mais premissas nesta história; Brezhnev também não queria complicações no equilíbrio precário e terá dito a Cunhal que era melhor não se esticar de mais. (Isto, já é especulação minha. Mas de certeza que o telefone vermelho entre Washington e Moscovo tocou algumas vezes.)
Também ficará para a História a aposta de Soares na União Europeia, um novo posicionamento indispensável para Portugal no contexto da Europa. (Se a UE está de rastos, já é outra história, imprevisível na altura). Ou seja, enquanto esteve no Governo, tomou muitas decisões com repercussão duradoura para esta República. Sempre agiu no nosso interesse. Com ele desaparece a geração dos grandes políticos do 25 de Abril, homens com mais motivações ideológicos do que materiais. E como fazem agora falta ícones do mesmo quilate!
Com o seu desaparecimento, encerra-se o Portugal do século XX.
(Declaração de interesses: entrei para o PS em 1974 e, apesar de não ter currículo político, nessa época o partido tinha falta de quadros e depressa passei a funcionário com a responsabilidade da Propaganda do partido. Até à entrada de Manuel Alegre, em meados de 1975. Na sede de S. Pedro de Alcântara, mínima e tumultuada, falava com ele quase diariamente e assisti a muitas decisões que se provariam lapidares. Depois disso só votei no PS pontualmente.)
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