1. José de Almada Negreiros e José Clemente Orozco nunca se encontraram em carne e osso, que haja notícia, mas entre as décadas de 1930 e 1940 andavam ambos a pintar paredes, com o oceano Atlântico pelo meio. Essas paredes são consideradas obras-primas no percurso de cada um, e o que está a acontecer agora no México é um encontro entre elas, apesar de as paredes serem coisas difíceis de transportar. Verdadeiro acontecimento, integrado no programa de Portugal como país-convidado da Feira do Livro de Guadalajara.
2. O encontro entre os dois Josés dá-se no Hospicio Cabañas, belo edifício de pedra, cheio de claustros e pátios com árvores de fruto, que abrigou órfãos desde o século XIX, até se transformar em centro cultural, hoje Património da UNESCO. É um dos ícones de Guadalajara, também pelos 57 murais que Orozco pintou na Capela Maior do edifício, entre 1938 e 1939. Um trabalho tão monumental que frequentemente é descrito como a “Capela Sixtina do México”, e foi recentemente restaurado, ressuscitando as cores de origem.
Orozco é — com Diego Rivera e David Siqueiros — um dos três grandes nomes do Muralismo Mexicano. Tem obras em vários lugares do México e dos Estados Unidos, onde também morou. Foi justamente depois de voltar de lá que iniciou estes murais, espécie de história vermelha & negra do México, desde os rituais do mundo indígena, que os conquistadores espanhóis derrotaram no começo do século XVI. Tal como Orozco o pinta, um universo esmagador, tenebroso, mas com o qual os mexicanos estabelecem uma relação desde crianças, como se pode ver numa tarde chuvosa de Novembro, a meio da semana.
O México parece ter uma infinita capacidade de dar encanto ao terrível. Não sei como será ver esta angustiante Capela sem bandos de crianças de queixo no ar, rodando sobre si mesmas, muito atentas ao que o professor vai contando, como se estivessem sempre ali, umas indo, outras vindo, para aprender sobre a história, e a arte. “A arte tem uma só regra”, resume o professor. “É subjectiva.” E por isso um fresco pode ter 27 significados, diz.
Nesse momento, aconchegamo-nos todos debaixo da cúpula central, onde está o mais famoso dos frescos, Homem em Chamas, ou Figura em Fogo, o núcleo espiritual da Capela. E, de entre todos nós, ninguém o terá visto mais vezes, milhares de vezes, do que este mexicano com o nome ao peito: Agustín Esparza Esparza. Não é um erro, a repetição: é que seu pai e sua mãe tinham o mesmo apelido. E, quando Agustín aponta os frescos dos indígenas pré-conquista espanhola de Hernán Cortés, diz “os nossos antepassados”. E, quando aponta os frescos dos conquistadores, diz “os espanhóis”. Família, para ele, é o mundo indígena. Tudo em Agustín, de resto, parece indígena, estatura, pele, feições. Por tudo o que diz, e como diz, dir-se-ia um guia, alguém que estudou para contar a história destes murais. Mas nada disso, é apenas um dos seguranças do centro.
O México também parece ter uma capacidade infinita de guardar o passado no presente. Então, quando dou por mim, agora que as crianças se afastaram para outros frescos, o segurança Agustín está lançado, animado, a falar do cronista espanhol da Conquista, Bernal Diaz del Castillo, ou do “assombro dos indígenas ao verem os cavalos de Cortés, porque o cavalo não era conhecido aqui, e ele veio com 18 cavalos e 500 soldados”. Os cavalos, como Orozco os imaginou, são das figuras mais poderosas desta Capela. Mas Agustin não se fica pelos frescos, cita livros, compara versões, interpretações, críticas mesmo de quem achou os murais de Orozoco “horrorozcos”. E, do mural que retrata a Dança dos Cativos, Agustín pode partir para a saga dos indígenas desta região, os índios Coca e Caxcan. “Guadalajara teve de ser fundada quatro vezes pelos espanhóis, porque os índios não deixavam”, conta, orgulhoso. “Os espanhóis tiveram de trazer como aliados 5000 indígenas da região onde hoje está a Cidade do México. Cortés usou povos que os aztecas tinham submetido, e os detestavam.” Índios contra índios, estratégia que os portugueses também usaram para dominar territórios do Brasil no século XVI.
A propósito de Portugal, Agustín aponta para um dos pátios, brilhante de chuva: “Domingo estive na exposição portuguesa.” Nas suas funções de segurança, quer dizer. E tão atento esteve, tanto se interessou, que sabe de cor o nome da curadora, e faz perguntas sobre outras dimensões da obra de Almada, que esta exposição não inclui. Até porque Almada, artista total como poucos, nunca caberá em nenhuma.
3. Então, sai-se da Capela Sixtina mexicana, contorna-se o pátio para escapar à chuva, e eis que uma fantástica tapeçaria de Portalegre nos mira, reproduzindo uma das pinturas que Almada Negreiros fez para a as gares marítimas de Lisboa, apenas alguns anos depois de Orozco pintar os frescos do Hospicio Cabañas.
A ideia de trazer o Almada muralista para o México, coincidindo com a presença de Portugal como país-convidado da Feira do Livro de Guadalajara, foi da comissária da programação geral, Manuela Júdice. Se não era possível transportar paredes, havia as tapeçarias que as reproduzem maravilhosamente, pensou. E, para organizar a exposição foi convidar Mariana Pinto Santos, curadora da última, e extraordinária, retrospectiva de Almada Negreiros na Gulbenkian.
Este recorte específico seria interessante em qualquer lugar do mundo, mas ganha uma vibração única ao ser visto no México, e sobretudo aqui, depois da capela vermelha & negra de Orozco. Uma explosão de cor, de graça, de vida, que superou subversivamente a intenção nacionalista de quem encomendou a obra, o governo “fascista e colonial” de Salazar, como refere a exposição. “Os exemplos de pintura mural que Almada deixou dão testemunho dos mecanismos a que recorreu para construir, com maior ou menor êxito, espaços de liberdade criativa”, diz o texto da brochura (gratuita, tal como o catálogo).
Mariana Pinto dos Santos ampliou a ideia inicial além das tapeçarias. Há fotografias, esboços, estudos relativos ao trabalho nas gares marítimas. E também imagens dos painéis que Almada fez, anos antes, para um cinema em Madrid. E ainda exemplos da recepção portuguesa dos muralistas mexicanos. “Em 1935 reproduziu-se pela primeira vez em Portugal um fragmento de um mural de Diego Rivera, mas depois de 1940 é que as imagens dos muralistas mexicanos, reproduzidas a preto e branco, começam a ser publicadas na imprensa de oposição. Certamente Almada não permaneceu alheio a essas imagens, enquanto pintava as paredes das Gares Marítimas de Alcântara e da Rocha do Conde Óbidos, justamente nessa década dos anos 40.” A exposição de Guadalajara inclui, assim, vários textos portugueses de então sobre os muralistas mexicanos, nomeadamente de Mário Dionísio e Júlio Pomar. No caso de Pomar, acrescentam-se ainda imagens da pintura mural que ele fez para o Cinema Batalha, do Porto, destruída pelo regime.
Os últimos frescos de Almada correram esse risco também. Onde a ditadura queria terminais marítimos celebrando a glória da navegação portuguesa com barcos repletos de turistas e visitantes, Almada não deixou de pôr mulheres descalças, peixeiras africanas, despedidas de cortar o coração, partidas de emigrantes que fugiam da pobreza.
Pomar descreveu os murais de Orozco como “máquinas medonhas”, um trabalho “obstinadamente trágico, o mais das vezes sem um traço sequer de longínqua mas concreta esperança”. Depois disso, Almada é um sol teimoso. Um grande sol dando vida a tudo, incluindo a dor, incluindo a morte. O que não deixa de ser muito mexicano. Se Guadalajara “ahorita” é da literatura portuguesa, é também de José de Almada Negreiros, com caveirinhas, até. Que les vaya bien.
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