Em 2013, o Centro de Comunicações Geoestratégicas, um grupo de analistas ao serviço do Kremlin, elaborou um estudo sobre as opiniões políticas e sociais dos eleitorados europeus. As conclusões eram, na altura, surpreendentes. Uma grande parte dos inquiridos estava contra o feminismo, as uniões do mesmo sexo, o movimento LGBT e, em termos mais gerais, contra as tendências progressistas que as elites políticas julgavam que eram o rumo inexorável da sociedade.

Uma vez que quantidade significativa de tradicionalistas europeus estavam desejosos de mostrar a sua oposição às políticas dominantes, havia uma oportunidade estratégica para o destinatário da análise, Vladimir Putin: podia incentivar, apoiar e, em última instância, liderar o movimento conservador europeu e, quiçá, mundial.

Essa tendência também existia dentro da própria Federação Russa, e Putin há anos que a aproveitava. Pode parecer estranho que um homem que tinha subido do zero dentro do aparelho repressivo do Partido Comunista da URSS pudesse alguma vez recorrer às forças anti-marxistas reprimidas e perseguidas com grande violência durante todo o período que foi de 1917 a 1989. Mas Putin não tem preconceitos ideológicos; a sua determinação de transformar a Rússia numa grande potência e de se manter como o líder dessa potência sobrepõe-se a quaisquer escrúpulos ou considerações éticas.

O seu discurso, ao referir-se à cultura “euro-atlântica”, passou a ser uma crítica à tolerância moral e à diversidade cultural. Considerava a Europa como sendo “infértil e assexuada”, enquanto os aparelhos de propaganda do Kremlin falavam em “Gayropa”. Este trecho de um discurso diz tudo:

“Podemos ver claramente como muitos países euro-atlânticos rejeitam as suas raízes, inclusive os valores cristãos que constituem os fundamentos da Civilização Ocidental. Negam princípios morais tradicionais da sua entidade natural, cultural, religiosa e mesmo sexual (...) Aprovam leis que colocam no mesmo pé de igualdade grandes famílias e relações entre homossexuais, emparelhando o serviço de Deus com a crença no Demónio.”

Pode parecer surreal que alguém que passou a vida a impor o materialismo dialéctico passasse a defender valores religiosos, mas o discurso não deixa margem para dúvidas: “Ao sucumbir perante o secularismo, o Ocidente dirige-se para um obscurantismo caótico e para o retorno do Estado primitivo.” Salazar e Franco o não diriam melhor.

Na altura – e estamos a falar de há três anos atrás – este discurso de Putin passou completamente fora do radar dos líderes e fazedores de opinião ocidentais. Ou não o ouviram, ou consideraram que estava a fazer-se interessante para a população russa – a mesma que gosta de o ver de tronco nu montado a cavalo, ou vestido de caçador a matar ursos. Também não incomodou ninguém que Putin - para além de reprimir brutalmente toda a oposição, mandando assassinar os mais vocais com grande criatividade (como o envenenamento de Alexander Litvinenko em Londres, em 2006) -, se aproximasse da Igreja Ortodoxa e defendesse reformas legislativas conservadoras.

Só agora, no discurso sobre o “Estado da Nação”, proferido em 1 de dezembro 2016, Putin levantou alguns sobrolhos ao dirigir-se à nata do poder (deputados, juízes do Supremo e do Tribunal Constitucional, líderes regionais e religiosos, etc.) defendendo a violência doméstica, ao que a Duma respondeu imediatamente em janeiro. A lei foi entretanto promulgada por Putin.

A estratégia de Putin em relação aos países ocidentais tem sido extremamente eficiente. O regime comunista da União Soviética tentou desarticular as sociedades ocidentais subsidiando e apoiando os partidos comunistas nacionais, e falhou em toda a linha. A subida do nível de vida dos trabalhadores, encantados com o consumismo proposto pela social democracia, esvaziou completamente esses partidos, que quase desapareceram. Putin mudou o paradigma; passou a subsidiar e apoiar os partidos mais à direita do espectro democrático, de todos os modos ao seu alcance.

No caso da França, por exemplo, doou fundos a Marine le Pen; nos Estados Unidos, espiou e expôs da pior maneira as comunicações privadas do Partido Democrata. Se ajudou Trump de outro modo ninguém sabe, mas não será por acaso que o novo Presidente norte-americano, agressivo com os seus aliados, tem sido particularmente brando com o líder russo. Durante a campanha eleitoral, Trump apresentou Putin como uma alternativa de liderança muito melhor do que Hillary Clinton, que acusou de má gestão, corrupção e falta de músculo nas relações internacionais. Também comparou o Presidente russo favoravelmente em relação ao então Presidente norte-americano: “Ele é um líder, muito mais líder do que Obama."

Há que reconhecer: um Presidente russo que consegue ser apreciado favoravelmente por um candidato a Presidente dos Estados Unidos, é um feito nunca visto (que os Estados Unidos, ou pelo menos metade dos seus eleitores, não tenham pensado por um segundo que raio isto podia significar, é outro assunto...).

É natural que Putin, como qualquer outro dirigente russo, queira recolocar o seu país numa posição preponderante no cenário internacional. O que é interessante é o modo como tem movido as suas peças, consolidando a influência mundial depois de garantido o poder interno. Putin tem um faro muito apurado para detectar as tendências sociais e culturais. O seu orçamento militar apresenta uma percentagem constante de 4% do PIB, mesmo nos anos em que a economia russa está em retracção. E não tem qualquer problema em atacar, moral ou fisicamente, seja onde for e quem for, sem precisar de consultar o legislativo. Tudo isto preparado desde 1999, quando foi nomeado Primeiro-Ministro pela primeira vez:

“Há séculos que a Rússia é uma grande potência. Não devemos descansar quanto a esta situação, nem podemos permitir que a nossa opinião seja ignorada.” Dezassete anos depois, o objectivo foi alcançado: ninguém pode ignorar as decisões da Federação Russa.

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