Pode parecer incompreensível que no mundo contemporâneo, onde a ciência tem um papel cada vez mais preponderante – mesmo entre quem dela desconfia – existam ideias que nem a dita ciência, nem o bom senso, justificam. É o caso, por exemplo, do conceito de que a Terra é plana, ou do princípio de que só se deve consumir vegetais. No caso da Terra, há até clubes que defendem a ideia, organizam congressos e fazem palestras. No caso dos vegetais, além de incontáveis organizações, milhões de pessoas que não se reunem ou conhecem, têm teorias várias que justificam o seu conceito. Tanto uns como outros, não fazem mal a ninguém. Quem quiser acreditar, acredita, e, quem não quiser, encolhe os ombros e segue a sua vida.
Depois, há as teorias que já não são tão inofensivas assim, com a de que as vacinas fazem mal à saúde. As vacinas salvaram a vida de um número colossal de pessoas e erradicaram muitas doenças fatais. Aumentaram exponencialmente as hipóteses de sobrevivência da raça humana. Mas a questão, na verdade, nem é essa; a questão é que as pessoas não vacinadas podem contagiar as outras e fazer ressurgir algumas maleitas extintas. Os chamados “anti-vaxers”, que se baseiam em dados não comprovados cientificamente, não vacinam os seus filhos, colocando assim em risco os filhos dos outros que com eles contactam, por exemplo, nas escolas.
Depois há as teorias que sustentam que as antenas que emitem frequências 5G causam problemas de saúde e são responsáveis pela propagação do novo coronavírus SARS-CoV-2. Ou, ainda, que o dito coronavírus foi uma invenção da indústria farmacêutica, ou do Bill Gates, ou do George Soros, ou dos três, para enriquecer ainda mais. Tudo discutível, improvável e sem comprovação policial ou científica.
E há ainda as teorias que não só são inacreditáveis, como também constituem um perigo, pelas consequências morais, sociais e políticas que provocam. Dentro destas, há uma se destaca pela novidade, rápida expansão, métodos e consequências. Chama-se QAnon (pronuncia-se quanom) e nasceu em 2017, com uma publicação na rede social 4chan por um tal de “Q”, que afirmava ter informação privilegiada sobre a máquina do Estado norte-americano – tanto sobre o Governo de Trump como sobre os seus opositores. Rapidamente várias pessoas começaram a assinar como Q e as suas histórias espalharam-se por todas as redes sociais.
Segundo os Q, existe uma cabala que envolve políticos, funcionários do Estado a todos os níveis e celebridades do cinema e das artes (como Oprah Winfrey e Tom Hanks) e que se dedica ao satanismo, à pedofilia e à destruição dos Estados Unidos.
A partir destas duas “bases”, depressa surgiram outras teorias, como, por exemplo, que Trump fingiu conspirar com os russos para convencer Robert Mueller (o procurador que investigou essa conspiração) a expor a cabala e assim evitar um golpe de estado liderado por Barack Obama, Hillary Clinton e George Soros. Outra teoria, essa repescada das eleições de 2016, era que Hillary e o seu chefe de campanha, John Podesta, tinham uma rede pedófila na cave duma pizzaria de Washington.
Parece que a imaginação dos Q, que já não se sabe quantos são, não tem limites nem noção do que é inacreditável, improvável ou impossível. É como se de repente centenas de pessoas tomassem alucinogénios e trocassem histórias de UFOs (naves espaciais não identificadas), taras sexuais, conspirações políticas surreais e ideias pseudo-científicas. Não se sabe quando surgiu a sigla QAnon para os classificar, mas sabe-se que não são uma organização, nem sequer um conjunto de grupos organizados. Qualquer pessoa, ou grupo de pessoas, pode escolher o meme QAnon e publicar o que lhe passar pela cabeça, sem coordenação entre eles ou uma linha de pensamento lógico.
Tudo isto não passaria de mais uma maluquice das redes sociais, se entretanto não começasse a aparecer nas rádios – nos inúmeros programas de direita radical que polulam pelo país – dando assim rosto a alguns dos “crentes” (não sabemos como lhes chamar, uma vez que não são membros de nada, nem associados de coisa nenhuma).
Alguns desses radialistas apareceram em eventos na Casa Branca, fotografados ao lado do Presidente, usando essas imagens para reforçar mais teorias malucas.
As acusações dos QAnon passaram a incluir o Dalai Lama e o Papa, além da afirmação que os membros da cabala matavam e comiam as suas vítimas para obter um componente do sangue que prolonga a vida...
Histórias antigas, como o assassinato de Kennedy e o atentado de 11 de Setembro também foram reescritas com novas provas das ligações mais inconcebíveis.
A partir do ano passado, o “movimento” QAnon passou das redes sociais e da rádio para o mundo físico. Em manifestações de extrema direita e reuniões de massa com apoiantes de Trump começaram a aparecer cartazes e t-shirts com a letra Q. O próprio Presidente, provavelmente sem saber ou pensar no assunto, retuitou centenas de mensagens de contas QAnon. A comunicação social, ao aperceber-se da existência do movimento, noticiou algumas ideias – para o desacreditar, mas, evidentemente, dando-lhe visibilidade e ampliando-o.
De manifestações e desacatos em que apareciam Qs, passou-se para eventos de rua organizados por Qs – ajuntamentos informais com elementos de grupos de extrema-direita e supremacistas brancos que cada vez aparecem mais em cidades grandes e pequenas.
No princípio deste ano, tanto o Facebook como o Twitter começaram a eliminar os posts e os grupos ligados ao QAnon e descobriram que havia grupos com mais de cem mil membros e que o total chegava aos milhões. Nem todos os membros acreditam nos mesmos disparates, provavelmente, e com certeza que muitos outros nem sabem a natureza dos grupos em que participavam. Mas as ideias circulavam – e continuam a circular, porque por cada conta que é eliminada surge outra com nome diferente e as mesmas histórias absurdas.
Por fim, mas não finalmente, uma aderente do QAnon acaba de chegar ao Congresso. Trata-se de Marjorie Taylor Greene, republicana, eleita a 11 de Agosto por um círculo da Geórgia. Durante a campanha, Greene disse que Obama é muçulmano, chamou nazi a George Soros (que é judeu) e questionou a versão oficial do atentado de 11 de Setembro em Nova Iorque.
Resumindo: em três anos, um post anónimo numa rede social marginal originou um movimento com milhões de aderentes e acaba de chegar ao Congresso dos Estados Unidos.
Realmente vivemos numa época extraordinária. Felizmente que naves espaciais hão-de aparecer para nos salvar.
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