Esta manhã, enquanto pensava num tema para esta crónica, pus-me a olhar para o meu filho mais novo a brincar. Que palavras temos na nossa língua para «filho mais novo»? Se pensarmos um pouco (ou se, em caso de esquecimento, consultarmos um dicionário), apanhamos logo duas palavras: «benjamim» e «caçula» — esta última muito mais usada em português do Brasil.
Antes de continuar, devo notar que a maneira mais comum de nos referirmos ao filho mais novo não é nem «caçula» nem «benjamim», mas sim, precisamente, «filho mais novo»… Uma língua pode ter palavras que expressam um determinado conceito e os falantes, teimosos, usam uma expressão um pouco maior. Não é nada de outro mundo: cada palavra tem um peso particular, uma certa maneira de se relacionar com as outras e com quem as usa — e nem sempre queremos usá-la, por este ou aquele motivo. Por exemplo, eu, se estivesse a falar em público, talvez dissesse, só para variar o vocabulário, «o benjamim lá de casa». Entre amigos, podia acontecer que me saísse «olhem aqui o caçula a rir», mesmo sendo uma palavra muito mais usada no Brasil. Mas na grande maioria das situações diria apenas, se necessário fosse, «o meu filho mais novo».
(Isto talvez seja mais uma pista para percebermos que, ao contrário da ideia corrente, a falta de uma palavra particular numa língua não tem de corresponder, necessariamente, a uma limitação dos falantes dessa língua. Através de outras palavras e desse motor de criação dum número infinito de frases que é a gramática, conseguimos lá chegar na mesma, mesmo que demore um pouco mais. Mas adiante — que hoje a viagem não passa por aí.)
Olhemos para as duas palavrinhas.
A palavra «benjamim» terá surgido como derivação do nome bíblico «Benjamim», o filho mais novo de Jacob. Nada a dizer: a Bíblia deu-nos algumas palavras — e muitos nomes.
Já «caçula» terá origem na palavra «kazuli», que tem esse preciso significado na língua quimbundo, uma língua africana da família bantu. Estas são línguas com gramáticas que nos fariam cócegas se as aprendêssemos. Só como exemplo: se nós temos dois géneros gramaticais, as línguas bantu têm, muitas delas, mais de uma dezena de classes de nomes. Os adjetivos têm de concordar com a classe do nome que qualificam — ora, essas classes são marcadas no início das palavras (enquanto nós, por cá, marcamos os géneros dos nomes no final), o que significa que muitos adjetivos têm de começar pelo mesmo som que o nome. Resultado: estas línguas produzem frases com muitas aliterações: por exemplo, a frase «Aquelas duas boas pessoas caíram.» escreve-se, em suaíli, «Watu wazuri wawili wale wameanguka.».
Bem, o quimbundo deu algumas palavras ao português — principalmente ao português do Brasil, o que se compreende, tendo em conta o número de falantes de quimbundo que para lá foram levados como escravos. Olhando para o português de Portugal, há também algumas palavras com origem nas línguas bantu. Por exemplo, a palavra «quezília», que parece ter vindo de «kijila».
Mas talvez o mais famoso vocábulo com origem no quimbundo seja uma palavra que algumas pessoas dizem não ser uma palavra — e isto apenas por ser típica do registo mais informal.
Falo de «bué». É bem provável que tenha vindo de «mbuwe», que quer dizer «abundância» ou «fartura» (segundo a Infopédia).
É uma palavra muito informal, de facto — mas existe e é usada por muitos portugueses e já não me parece que esteja reservada apenas às crianças e adolescentes. Oiço-a da boca de adultos de 40 anos, quando estão a falar à vontade (alguns deles talvez jurem nunca a dizer, mas nós somos todos terríveis observadores do nosso próprio uso da língua).
Não nos preocupemos: todas as gerações usam palavras novas — algumas desaparecem sem rasto; outras, como «bué», acabam por ficar, pelo menos até os falantes se fartarem. Pois a verdade é que essa palavrinha é, hoje, bem portuguesa. Nem os brasileiros costumam saber o que significa…
Uma palavra com várias décadas de uso já está nos dicionários, o que parece irritar uns quantos. Note-se que uma palavra estar no dicionário não significa que tenhamos de a usar — pelo menos, não temos de a usar todos (cada falante tem o seu vocabulário) e muito menos temos de a usar em todas as situações. Muitos dos bons dicionários registam os palavrões — e isso não nos dá autorização para usá-los por dá cá aquela palha.
Há, na verdade, alguma confusão sobre a função dos dicionários. Um dicionário não serve para criar palavras — as palavras existem primeiro na boca dos falantes e só depois nas páginas do dicionário. Também não serve para autorizar o uso de determinada palavra pelos falantes. Quando falamos, não andamos a folhear esse delicioso livro para saber se podemos ou não usar uma palavra.
Então, para que servem os dicionários? Servem, principalmente, para três coisas.
Primeiro, para nos ajudar a saber como escrever uma palavra quando temos dúvidas.
Segundo, para registar o significado que os falantes dão às palavras. Como nenhum de nós conhece todos os vocábulos da língua, às vezes temos de ir ver o que significa uma palavra que, antes, nos era desconhecida. Para isso, os dicionários têm de ser abrangentes… Se não o fossem, não seriam tão úteis.
Os dicionários serão especialmente úteis para os estrangeiros que tentam aprender a língua. Ora, um aluno estrangeiro de português, se ouvir um miúdo a dizer «bué», vai querer saber o que significa a palavra — mesmo que o pai do miúdo torça o nariz.
Se o dicionário for bom, irá tentar orientar o falante sobre as situações em que a palavra é usada — mas, na verdade, só conseguimos aprender bem esse jogo através de tentativa e erro, usando a língua no dia a dia e ouvindo com atenção os outros.
E o terceiro uso dos dicionários? Ajudam-nos a encontrar a palavra certa para aquele texto que estamos a escrever. Aliás, há dicionários especializados nesta função: falo dos dicionários de sinónimos.
O certo é que a língua se faz de muitas palavras, muitas delas com significados parecidos, mas usos diferentes. Algumas dessas palavras estão cá há muitos séculos, vindas de muitas paragens (do latim, do grego, do hebraico, de línguas vizinhas — ou mesmo de paragens que não imaginamos). Outras chegaram há menos tempo. Já percebi que há quem tenha horror a palavras com origem noutros países de língua portuguesa, como «caçula» ou «bué» (a «quezília» parece não levantar quezílias, talvez porque a origem seja pouco conhecida). E, no entanto, se levámos uma língua inteira para essas paragens, que mal haverá em recebermos umas quantas palavras de volta?
Crónica publicada anteriormente.
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras.
Comentários