1. Em 1946, uma adolescente chamada Claudine chega a Nova Iorque para morar com um tio. O pai, judeu, e quase toda a família paterna, tinham morrido em Auschwitz e Dachau. A mãe ficara na Suíça. Claudine tem 15 anos, e aí, no Bronx, passa a chamar-se Claudia. Poucos anos depois casa brevemente com um espanhol, refugiado da Guerra Civil, e guarda o apelido dele, Andujar. É por este nome que o mundo a conhecerá, Claudia Andujar. Pelo menos a parte do mundo que em algum momento se cruzou com as suas fotografias, e a sua luta.
Claudia Andujar, hoje com 88 anos, é a mais importante fotógrafa da Amazônia. Ela, que viu morrer não só boa parte da família, como os amigos de infância e o rapaz que lhe dera o primeiro beijo, flanou pelas Américas até encontrar entre os indígenas da Amazônia, particularmente os yanomami, a sua casa. Começou a fotografá-los para os entender, e para se entender. Era uma casa em risco, ameaçada. E essa tornou-se também a luta dela. Casa, arte e luta.
Neste momento no Rio de Janeiro, a retrospectiva Claudia Andujar: A luta Yanomami é uma súmula de tudo isto, com mais de 300 fotografias, desenhos e documentos da fotógrafa. Resultado da pesquisa e selecção que o curador Thyago Nogueira, do Instituto Moreira Salles (IMS), fez num acervo com cerca de 40 mil imagens. A mostra já esteve no IMS de São Paulo e estará na Fondation Cartier de Paris (Dezembro de 2019-Maio de 2020), no FotoMuseum de Winterthur, Suíça, (Junho-Agosto de 2020,) em Milão (a definir) e na Fundación Mapfre, de Barcelona (Fevereiro-Maio de 2021).
Quando chegarão estas imagens a Portugal? Museus, fundações, centros culturais, alguém? Claudia está viva, é uma testemunha única de décadas entre os indígenas, uma fotógrafa extraordinária, e a sua luta não podia ser mais actual num momento em que Bolsonaro quer liberalizar a mineração nas terras indígenas, em que boa parte das terras indígenas são alvo de garimpo ilegal, sobretudo de ouro, em que regiões inteiras e rios estão a ser destruídos, e indígenas a serem mortos e ameaçados.
Basta levantar uma pedra e sai mais uma história terrível. Foi o que me aconteceu quando preparava esta crónica. Lá chegarei.
Mas não é só em relação ao Brasil que a luta de Claudia tem muito a ensinar. Portugal não tem povos indígenas: tem na sua história um genocídio indígena. E, quinhentos anos depois, muito para aprender sobre as consequências de saquear a terra. Do gás ao lítio, estamos a falar de agora e aqui. Estamos a falar de todos nós.
2. Para termos ideia da escala no Brasil, estão registados 4332 requerimentos para minerar em terra indígena. E as áreas em causa representam cerca de um terço das terras indígenas. A maior parte nem sabe se lá há alguma coisa, quer escavar para ver. Imagine-se num cenário de liberalização, virtualmente qualquer terra passa a poder virar um buraco.
Partidário da mineração, Bolsonaro diz que antes fará uma consulta pública. Mas começou logo por desacreditar a sondagem DataFolha segundo a qual 86 por cento dos brasileiros são contra minerar em terra indígena.
Em vez de combater o garimpo ilegal, de proteger a terra e a vida dos indígenas todos os dias ameaçados por garimpeiros, Bolsonaro pôs em dúvida o assassinato recente de um cacique Wajãpi, no estado do Amapá, e prosseguiu a sua campanha pela mineração.
Só no território yanomami haverá 20 mil garimpeiros ilegais em busca de ouro, alertou recentemente Dario Kopenawa, filho do grande xamã yanomami Davi Kopenawa. E quem denuncia corre perigo: “Uma coisa que quero deixar bem clara é que as lideranças que estão denunciando estão correndo risco. Eles dizem: ‘Se você continuar denunciando a gente vai pegar você, vai bater em você, vai matar você’, é assim que os garimpeiros estão falando para alguns amigos deles para deixar recado para quem está denunciando o garimpo.”
3. Davi Kopenawa escreveu, com o antropólogo francês Bruce Albert, um livro que devia ter também edição portuguesa: “A Queda do Céu”. É o único livro que conheço que permite ver o mundo, e a história, através da perspectiva de um líder indígena. Desde as memórias de criança dele, a primeira visão de um branco, o trauma das invasões, da violência dos garimpeiros e toda a espécie de destruições causadas naquilo a que os yanomami chamam “urihi”, a terra-floresta, que inclui seres humanos e não humanos. Mas também toda a cosmologia yanomami, o pensamento daquele povo, a forma como tudo se liga na vida deles, antepassados e espíritos, floresta e chão, céu e animais. “A Queda do Céu” é um prisma precioso para quem se dispuser a olhar para o passado colonial e para o presente colonizador, para o mundo, e para outros mundos, novas possibilidades do mundo.
4. Foi a este território yanomami que Claudia chegou em 1971. Já fotografara outros povos indígenas: karajás, borobo, xikrin. Já tinha anos de Amazônia, e morava no Brasil desde 1955. Mas com os yanomami o seu trabalho ganha uma outra profundidade. Muda de facto a vida dela. Como ela resume bem num dos textos do magnífico catálogo desta exposição: “Estou ligada ao índio, à terra, à luta primária. Tudo isso me comove profundamente. Tudo parece essencial. E talvez nem entenda tudo, e não pretendo entender. Nem preciso, basta amar.”
5. Só quem passou muito tempo com os yanomami, a acordar com eles, a comer com eles, a caminhar com eles durante dias em busca de alimentos, a estender a rede para dormir no meio de todos os sons do mato, a ver os yanomami brincarem, namorarem, amamentarem, nascerem, morrerem, fazerem rituais de passagem e cerimónias para os mortos; e para além de tudo o mais lhes deu medicamentos, lhes tratou cáries, lhes trouxe vacinas (por causa das doenças e dos açúcares trazidos pelo mundo branco), por vezes tendo febres de malária, e tendo medo, picada por mosquitos todo o tempo, nos primeiros anos sem nem sequer falar a língua, nem podendo perguntar para onde caminhava, por quantos dias; só alguém assim podia ter feito estas fotografias.
Claudia foi sempre experimentando de modo a não apenas documentar. A poder traduzir, ou aproximar-se o mais possível do que estava a ser vivido. Então usou filtros, flashes, lamparinas, pôs vaselina na borda da lente, agitou a câmara, fotografou em múltipla exposição, em baixa velocidade, com pouca luz, refotografou as fotografias. E o resultado, por exemplo nas sequências relacionadas com os rituais, são imagens oníricas, ou esfumadas, ou sobrepovoadas, fantasmagóricas, psicadélicas. Ela buscou diferentes linguagens, criou-as, para poder dar uma outra verdade do que viu, ou sentiu. “É uma arte”, como se diz a dada altura no catálogo. E de facto. Várias dessas imagens estão entre as minhas favoritas. Mas há também uma atmosfera de intimidade, de sono e de sonho, de abandono na comunhão da natureza, que é única. E todos os rostos, todas as partes do corpo, a presença da pele tão nítida, em veias, buracos, cicatrizes, o corpo recém nascido e envelhecido, os muitos corpos das mulheres.
Por entre tudo isto, Claudia viu morrer, e adoecer em epidemias, muitos deles, nos avanços das estradas, nas invasões. E com Bruce Albert e o missionário Carlo Zacquini trabalhou para a criação do Parque Yanomami, de modo a proteger juridicamente os indígenas. Davi Kopenawa é um dos seus parceiros de luta há décadas.
6. Ainda não estive entre os yanomami, mas cheguei não muito longe, a uns cem quilómetros, quando viajei até São Gabriel da Cachoeira, o município mais indígena do Brasil, nos confins do Amazonas. Vi aí como os trabalhos e negócios daquilo a que os yanomami chamam o “povo das mercadorias” trazem dramas tremendos às populações indígenas. Alcoolismo, prostituição, abuso.
Tudo o que os povos indígenas não precisam é de uma nova corrida ao ouro patrocinada pelo estado brasileiro, que de brinde encoraje ainda mais garimpeiros ilegais.
7. Ora, quando eu preparava esta crónica troquei mensagens com um amigo brasileiro, Felipe Milanez, que conheci justamente na Amazônia, quando ambos investigávamos, no sul do Pará, o assassinato de um casal de ambientalistas. Agora ele é professor na Universidade Federal da Bahia, e acaba de voltar do Pará, para uma pesquisa sobre os efeitos de Bolsonaro na Amazônia. Enviou-me uma sequência de fotografias com áreas revolvidas, esventradas como por um grande desastre.
“Essas fotos são de garimpos ilegais na terra indígena Kayapo, no sul do Pará”, explicou. “Dois rios foram completamente destruídos nos últimos quatro anos: Rio Fresco e Rio Branco. Isso significa exatamente o período de instabilidade democrática que levou ao golpe de 2016, e o da eleição de Bolsonaro. Com as mensagens dele legitimando as práticas ilegais e os crimes, tal como dizer que quer legalizar garimpos ilegais na Amazônia, o que incentiva os garimpeiros e os investidores por trás para avançarem ainda mais, seguros de que não haverá repressões da Polícia Federal ou do Ibama [Instituto do Ambiente], ou se houver, serão repreendidas por Bolsonaro.”
Eu tinha dito a Felipe que ia escrever algo sobre os yanomami. E ele estava a responder dando-me o seu mais recente testemunho noutro lugar da Amazônia, muito longe. “A questão é que a situação nos Yanomami não é excepcional com relação ao que acontece no país, mas sim um sintoma de uma destruição sistêmica que tem nos garimpos as frentes de avanço sobre os territórios indígenas. Hoje, nos Yanomami, assim como nos Munduruku, nos Kayapo, no Vale do Javari, em diversas terras indígenas em Rondônia, no norte do Mato Grosso e sul do Amazonas, garimpeiros financiados por políticos ligados a Bolsonaro estão explodindo rios, que ficam parecendo regiões bombardeadas, para retirar alguns quilos de ouro, enriquecer poucos e devastar populações inteiras e a floresta. Tem uma aldeia que se chama Turedjam, ela aparece no filme ‘Toxic Amazon’ como uma linda aldeia bucólica, isso foi em 2012. Em 2014 eu estive lá brincando com crianças kayapo, tomando banho num rio de águas cristalinas, o rio Branco. Passava o dia no rio, horas e horas no fim de tarde jogando os pequenos kayapo para o alto. Água deliciosa. Hoje esse rio não existe mais, está todo destruído como um bombardeio. Ninguém entra no rio. A água que tomam é de poço, e o banho é de chuveiro. parecido com o que aconteceu em Minas Gerais por conta dos crimes da Vale no Rio Doce.”
Sim, vi isso com os meus olhos, agora em Maio, quando fui até à aldeia indígena dos krenak, visitar o líder Ailton Krenak, como já contei aqui numa crónica. Ele levou-me até à beira do rio deles, o Rio Doce, agora morto. Milhões de peixes que se foram. Água para todos os seres vivos, para tomar banho, lavar e brincar, tudo acabou. Têm de vir todos os dias camiões cisterna com água potável. Cachorro que entre no rio sai com o focinho necrosado. Eu nunca tinha visto um rio morto. Crime de uma mineradora que segue aí. É o próprio sistema.
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