A fotografia data de Novembro do ano passado. Nesse dia, o Mamadou e eu - dois perfeitos desconhecidos - estávamos incumbidos de apresentar o mesmo livro de poesia da Gisela Casimiro. Cheguei tarde ao evento – não por aversão à pontualidade, mas por uma notável capacidade de agendar várias coisas para a mesma altura. O Mamadou chegou a horas, e já ia a meio da sua dissertação quando eu finalmente me abeirei da porta do “Galegas 7”, um tasco superlotado onde se apresentava o livro da Gisela.
Interrompo o relato porque é importante falar da Gisela Casimiro. Trata-se duma poeta (adiro aqui ao politicamente correcto de não lhe chamar “poetiza”) nascida na Guiné-Bissau. Poeta e negra. Não se choquem se aparento sintetizar em demasia a Gisela, há um propósito para tal. É que o tom da pele e o tom dos versos dela podiam ser o foco deste texto; em boa medida até o são. A Gisela é luso-guineense, mas frequentemente pessoas supõem que é cabo-verdiana. Eu não sei se esta suposição é ofensiva - e “o que eu não sei” podia ser o foco deste texto; em boa medida até o é.
Cá também me tomam várias vezes por cidadão estrangeiro. Sou atendido em inglês em muitos estabelecimentos, e é também na língua de King James que tentam vender-me louro prensado. Ser-me-ia menos estranho que a abordagem fosse em hebraico, que o que mais me escapa à banal portuguesidade é este nariz de judeu. Talvez por ter altura ligeiramente acima da média, uma vez até me perguntaram se eu era sueco e, aí sim, subentendi alguma ofensa – é que, a ser sueco, faria parte daquele 1% dos suecos que são os feios. Adiante; eu tinha chegado atrasado ao Galegas 7, e o Mamadou já discursava.
O espaço é pequeno e àquela hora estava inundado de pessoas. A massa compacta de gente impediu-me de furar, de ouvir e até mesmo de ver (e eu nem sou propriamente baixo, sou mais como os suecos feios) o que se passava ali no centro. Resignado, encostei-me à porta pelo lado de fora. Fui-me inclinando das formas que pude - parecia que sintonizava o meu corpo como as varetas daquelas antenas que antigamente se posicionavam em cima dos televisores. Ia enfiando a cabeça para dentro da sala, tanto para apanhar algumas palavras do Mamadou como para dar sinal de vida, sinal de que o prelector atrasado não era prelector absente.
A tarefa de escutar, contudo, estava estorvada pelo grupo de gente congregado junto à porta, nomeadamente uma senhora que não parava de bradar perguntas a um conviva seu, sempre em inglês sul-africano. Fiquei cheio de vontade de calá-la com um sonante “Vai para a tua terra!”. Em minha defesa, ela era branca, e parecia ser portuguesa (apesar do inglês e da pronúncia sul-africana). É menos grave um “Vai para a tua terra!” nestes casos, certo? Não é desumano exigir a um nativo que volte a emigrar, certo? Nem se trata de xenofobia, só dum “desampara-me a loja”. Este texto também podia ser sobre a dificuldade em discernir os “vai para a tua terra!”. Em boa parte até o é. Em minha defesa, aquela mulher era branca, portuguesa, e eu acabei por não dizer nada.
O Mamadou terminou, a Gisela indagou pela minha presença, e uma amiga nossa apontou para o contorcionista narigudo colado à porta. Abriram alas, avancei para o centro e fiz o que tinha a fazer. Foi no decorrer da minha intervenção que nos fotografaram: lado a lado, ambos em sintonia na combinação dos tons do vestuário - como se fosse premeditado e simbólico. No fim alguém até me perguntou se eu tinha ouvido o discurso do Mamadou, ao que respondi (de punhos cerrados, lembrando-me de acentos sul-africanos) que não – a resposta foi acolhida com surpresa pois, pelos vistos, tinha havido demasiados pontos comuns entre as apresentações.
Um par de meses depois, com os acontecimentos no bairro da Jamaica, o Mamadou Ba atingiu o seu pico de notoriedade. De repente, havia quem quisesse discutir menos os excessos policiais naquele bairro seixalense e mais os excessos de linguagem do Mamadou. Acusaram-no de aproveitamento político. Trataram a sua indignação como se um qualquer corporativismo fosse. Por ter tido voz activa e agastada contra um episódio lamentável, escalpelizaram-lhe a vida privada e as fontes de rendimento.
Durante essas contestações ao Mamadou, lembrei-me do nosso breve episódio no Galegas 7. Recordei a noite em que estivemos literalmente lado a lado para assumir que, agora também, estávamos lado a lado. Recordei quando envergámos as mesmas cores e as mesmas palavras, recordei quando fui Mamadou Ba por acaso, para agora dizer “eu sou Mamadou Ba” de propósito, com intenção e atitude solidária. Um #jesuismamadou. Mas é tudo treta.
Eu não sou Mamadou Ba. Eu não estou ao lado dele. Nem sequer simbolicamente. Essa é que é essa. Não posso ser, nem estar ao lado, de alguém cuja realidade não compreendo. Eu não sei o que é ser injuriado por causa da cor da minha pele. Eu não sei o que é ser importunado por jagunços de extrema direita a bradar o quanto me pagam. Eu não sei o que é ser enjeitado num país de adopção. Eu não sei o que é haver gente a atravessar a estrada, ou a esconder a carteira, só por causa da morenez da minha pele. Não sei o que é viver entre o ser alvo de desconfiança e o descargo de consciência.
Portugal tem um problema de racismo, é certo. Só que também tem um problema de solidariedade iludida. Nem vos vou cansar a condenar o óbvio, a violência e o ódio. Mas condeno a inconsciência dos que se julgam conscientes – tanto os caucasianos que acham que o racismo é só uma questão de intencionalidade, como os outros caucasianos que acham que a solidariedade é um tomar vicário das dores dos desfavorecidos.
Primeiro: a intencionalidade não pode ser tudo o que define o racismo. Se usamos como único critério o arbítrio próprio, ignoramos que o nosso raio de acção (o nosso palco de liberdade) ainda está contaminado por séculos de humilhação e subordinação. Coisas que nos são indiferentes podem ser esmagadoras para outros, nomeadamente aqueles que ainda não conseguiram emancipar-se da tal tradição histórica de subjugação. A falta de intencionalidade não nos retira a capacidade, nem a responsabilidade, de possíveis ofensas. E eu até estou a marimbar-me para certas picuinhices, e para cartilhas anti-racistas que pouco sentido fazem no nosso contexto cultural (e não passam de importações para que alguns novos-moralistas tenham mais uma comichão com que se acossar). Falo simplesmente de coisas que não têm de ser simples. Falo da sensibilidade para com quem se pode acabrunhar, e senso de não estarmos sempre (ou quase nunca) habilitados para compreender os ofendidos.
Segundo: a solidariedade não pode ser um black face do coração, ou uma apropriação cultural dos sentimentos. Isto pode parecer complicado e paradoxal, mas acredito que o caminho para a igualdade passa pelo reconhecimento da diferença; por sua vez, conhecer a diferença passa por assumir que há coisas que nunca compreenderemos. Quando vi as imagens da carga policial no Bairro da Jamaica, indignou-me a injustiça e a violência, mas minto se disser que percepcionei os agredidos como se fossem minha família. Não senti que eram os meus antepassados, que eram os meus descendentes, que era eu próprio ali na extremidade errada dos bastões. Nunca conhecerei esse elo íntimo com desconhecidos - elo activado por dor e humilhação; elo resumido pela escuridão da pele. Se o compreendesse, talvez “bosta da bófia” (quer “bosta” seja adjectivo, quer seja substantivo) fosse o mais brando dos meus desabafos.
Achar que as reclamações do sr. Ba são as de um provocador, e não as dum provocado, pode muito bem ser racismo passivo, todavia racismo. Discordo e discordarei activamente de muitas coisas que o Mamadou vai afirmando, mas noutras terei sempre de dar-lhe o benefício da dúvida, e desconfiar dos meus instintos. Para consegui-lo, nem sequer preciso de ser perdulário com a delinquência, ou preconceituoso com as nossas forças policiais.
Isto afinal é mesmo sobre as coisas que eu não compreendo. Quando apresentei o livro da negra e poeta Gisela, achei que entendia um certo poema que lá estava. Mas a mensagem desse texto só me chegou depois, exactamente quando assumi que o sentido me ultrapassava. Passo a transcrevê-lo:
Quando for grande
Quando for grande quero ser polícia
para bater nos pais de outros meninos
em frente aos outros meninos.
O meu pai sempre me disse:
cuidado a quem dás bastonadas.
Nunca dês bastonadas a um preto
senão vão achar que és racista.
Se deres bastonadas a um branco
estarás apenas a ser polícia.
Ainda bem que não somos pretos.
Imaginem se fôssemos pretos.
Já não podia ser polícia.
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